segunda-feira, julho 07, 2008

5 anos

Só agora reparei que fez, há poucos dias, 5 anos desde que abri este oráculo dos basbaques. Obrigado a todos e todas que me foram lendo ao longo de todo este tempo e especialmente a aos que mesmo tendo vindo há menos tempo, já leram tudo o que de mau e de bom havia para ler desde Julho de 2003, quando eu ainda era apenas um despreocupado estudante de Psicologia que decidiu publicar a escrita numa véspera de um exame. 5 anos é muito muito tempo...G.F.

tulicreme


No dia em que descobri que os meus avós não eram imortais, doeu-me muito a cabeça. Achei muito estranho podermos desaparecer. Achei muito estranha a tirania de terem que desaparecer aqueles de quem mais gostamos. No dia em que descobri que os avós se podiam esquecer dos netos e dos seus filhos, mesmo sem desaparecerem, doeu-me muito a barriga. Achei muito estranho podermos perder a memória. Achei muito estranha a tirania de um dia deixarmos de nos lembrar de quem gostamos. Nesses dias deixei de ser criança por alguns momentos. Mas depois disseram-me que a vida não era assim tão dura ainda. Deram-me então torradas com tulicreme. Passou-me a fome e passou-me a angústia. Entretanto cresci. Na noite em que descobri que as namoradas podiam deixar de gostar de nós, doeu-me muito o coração. Achei muito estranho podermos deixar de amar. Achei muito estranha a tirania de um dia não termos vontade genuína de responder “eu também” e apenas sorrir. Na manhã seguinte quis comer outra vez torradas. Só a fome passou: o tulicreme já não sabia e já não sabe ao mesmo.

Depois passado uns anos, numa tarde de verão, deram-me um frasco de nutela e eu deixei de achar tudo estranho. Nesse dia voltei a ser criança por alguns momentos. Passou-me a angústia mas ainda fiquei com mais fome. Gastei frascos e frascos. A nutela continuou a saber ao mesmo. Se um dia os senhores do marketing mudarem o sabor da nutela, espero que alguém me ofereça uma coisa mesmo boa para barrar as torradas. G.F.

ladrões


Anteontem Madalena pediu a Jeremias que fosse roubar todo o sal do mar por ela. Jeremias não conseguiu, foi ao LIDL e comprou um 1 kg de sal fino. Nem do grosso se lembrou de comprar. Escreveu num papel com uma bic “Todo o sal do mundo, para ti Madalena”. Ela acreditou e beijou-o. Ontem Madalena pediu a Jeremias que fosse roubar toda a luz do mundo por ela. Jeremias não conseguiu, foi a uma loja dos chineses e comprou uma lâmpada. Nem das ecológicas se lembrou de comprar. Escreveu num papel com uma bic “toda a luz do mundo, para ti Madalena”. Ela acreditou e fizeram outra vez amor durante toda a noite. Hoje acordaram e Madalena pediu a Jeremias que fosse roubar por ela todos os doces do mundo. Jeremias não conseguiu, foi à mercearia do Senhor Garcia, comprou 3 rebuçados, 2 chupas de morango e 200 gramas de gomas. Nem chocolates se lembrou de comprar. Escreveu num papel com uma bic “todos os doces do mundo, para ti Madalena”. Ela acreditou e tiveram 12 netos. G.F.

Tu estás aqui

Estás aqui comigo à sombra do sol

escrevo e oiço certos ruídos domésticos

e a luz chega-me humildemente pela janela

e dói-me um braço e sei que sou o pior aspecto do que sou

Estás aqui comigo e sou sumamente quotidiano

e tudo o que faço ou sinto como que me veste de um pijama

que uso para ser também isto este bicho

de hábitos manias segredos defeitos quase todos desfeitos

quando depois lá fora na vida profissional ou social só sou um nome e sabem

o que sei o

que faço ou então sou eu que julgo que o sabem

e sou amável selecciono cuidadosamente os gestos e escolho as palavras

e sei que afinal posso ser isso talvez porque aqui sentado dentro de casa sou

outra coisa

esta coisa que escreve e tem uma nódoa na camisa e só tem de exterior

a manifestação desta dor neste braço que afecta tudo o que faço

bem entendido o que faço com este braço

Estás aqui comigo e à volta são as paredes

e posso passar de sala para sala a pensar noutra coisa

e dizer aqui é a sala de estar aqui é o quarto aqui é a casa de banho

e no fundo escolher cada uma das divisões segundo o que tenho a fazer

Estás aqui comigo e sei que só sou este corpo castigado

passado nas pernas de sala em sala. Sou só estas salas estas paredes

esta profunda vergonha de o ser e não ser apenas a outra coisa

essa coisa que sou na estrada onde não estou à sombra do sol

Estás aqui e sinto-me absolutamente indefeso

diante dos dias. Que ninguém conheça este meu nome

este meu verdadeiro nome depois talvez encoberto noutro

nome embora no mesmo nome este nome

de terra de dor de paredes este nome doméstico

Afinal fui isto nada mais do que isto

as outras coisas que fiz fi-Ias para não ser isto ou dissimular isto

a que somente não chamo merda porque ao nascer me deram outro nome

que não merda

e em princípio o nome de cada coisa serve para distinguir uma coisa das

outras coisas

Estás aqui comigo e tenho pena acredita de ser só isto

pena até mesmo de dizer que sou só isto como se fosse também outra coisa

uma coisa para além disto que não isto

Estás aqui comigo deixa-te estar aqui comigo

é das tuas mãos que saem alguns destes ruídos domésticos

mas até nos teus gestos domésticos tu és mais que os teus gestos domésticos

tu és em cada gesto todos os teus gestos

e neste momento eu sei eu sinto ao certo o que significam certas palavras como

a palavra paz

Deixa-te estar aqui perdoa que o tempo te fique na face na forma de rugas

perdoa pagares tão alto preço por estar aqui

perdoa eu revelar que há muito pagas tão alto preço por estar aqui

prossegue nos gestos não pares procura permanecer sempre presente

deixa docemente desvanecerem-se um por um os dias

e eu saber que aqui estás de maneira a poder dizer

sou isto é certo mas sei que tu estás aqui

Ruy Belo
Toda a Terra
Todos os Poemas
Assírio & Alvim
2000

Mina Lunar

Acabou de pisar uma mina lunar. Estilhaça em câmara lenta. A gravidade não sustenta os pedaços de si própria. Vê-se despedaçar pianamente. Fragmentos da sua identidade relativa, distribuídos aos milhares em avanços milimétricos pelo universo tornado finito. Acabou de pisar uma mina lunar. Rebenta por dentro e por fora numa explosão retardada ao absurdo da demora. Ela acabou de pisar uma mina lunar e agora eclode devagar vendo-se a si própria dividir, desencontrando-se numa dor mais que gerúndia. Ela acabou de pisar uma mina lunar. Calcou-a na curva da emboscada. Agora pulveriza-se morosamente sem qualquer serenidade própria de quem queria adiar mais um pouco. Sem retardo desfaz-se em frames. Não há fogo, não há cheiro a pólvora, não há sangue, não há cinzas e deixa cada vez mais de haver chão. Não há sequer velocidade suficiente para ela não poder ver o seu dissociar. Observa, obrigada, a repartição confusa de si mesma. Tudo teria sido fácil se tivesse pisado uma mina terreste. G.F.