quarta-feira, março 31, 2004

Amor segundo um puto.

A Ana Elisa teve a ideia genial de me pedir para gravar respostas dos putos lobitos sobre o que achavam que era o Amor. As perguntas que ela me pediu eram simples, a ideia com toda a certeza só poderia resultar. Já tinha falado com eles sobre isso e sempre tenho pena de não decorar todas as pérolas de sabedoria que me transmitem todos os Sábados, todas as actividades. Um dia escrevo, quando tiver a cassete todo o diálogo. Para que fique na memória que 5 ou 6 putos têm muito mais a ensinar que 5000 ou 6000 cientistas, teólogos, poetas, filósofos. Hoje deixo só aquilo que o Ricardo, de 7 anos e irmão do Guilherme, respondeu.

Perguntei-lhe "se o Amor fosse um objecto qual seria"? Ele respondeu "a parede", olhando para todos os lados e encontrando o que lhe veio logo à cabeça. "Uma parede porquê?", perguntei-lhe. E ele disse-me, "porque é dura", meio ao calhas sem pensar. Perguntei-lhe: "Mas achas que o amor é duro?" Ele esteve uns longos momentos a pensar e quando já estava para desistir de acreditar que ele pudesse associar a alguma explicação respondeu-me na sua voz de reguila, perspicaz e com uma expressão de representação infantil da tristeza: «Sim, quando as pessoas se separam é.»
Mais tarde no meio de um bando de putos, quando pedi para deixarem uma mensagem para quem não tivesse namorado e namorada e se sentisse triste, o Ricardo, interrompendo algumas respostas dos amigos, chegou-se a mim e ao pé do microfone e disse-me olhando-me com malandrice: «Vai pó Parque das Nações que há lá muitas». G.F.

A fuga.

Encontrado no Desejo Casar um blog, o meu preferido ( já menos desde há uns tempos) que agora vai terminar. Infelizmente. Fica, não as palavras lindíssimas que muitas vezes lá fui beber (especialmente as de L.F.B) mas uma obra prima da pintura. Quando a imagem vale mais que as mil palavras...G.F.



"A Fuga", Barahona Possollo, óleo s/ tela, 1996

comentadores

Acho que vou tirar os comentários. Camus tinha razão, quem escreve às claras tem leitores, quem escreve com obscuridade tem comentadores. Eu preferia ser claro e que apenas me lessem e dissessem: li. E os que o fazem fazem-no sempre com beleza nos seus e-mails. Mas não, acho que vou deixar, seguindo o princípio da preguiça lógica e não o da obscuridade. Os outros, que me escrevam. Um dia, minto, responderei. G.F.

desterro

Quando nos começamos a adoptar a alguma coisa, a estacar identidades, a construir um lar de valores e de afinidades, as coisas mudam. Mudam as estações. Mudam as temperaturas. Mudam as vontades. Para mim a mudança, em especial também a do clima, é sempre acompanhada de uma melancolia que nunca soube diagnosticar a causa. Porque talvez viva como se estivesse numa tenda. Nunca entre betão armado. Os alicerces só os uso quando acredito mesmo a sério nas construções.

Provavelmente não é a mudança do que me rodeia mas a mudança constante em mim que me traz essa melancolia. Uns poderão dizer que é uma doença bipolar bem resolvida ou benigna. Outros simplesmente «que há gente assim». Os acontecimentos passados e próximos têm-me feito pensar na precariedade de tudo o que existe. Na ligação vital que tenho com os outros e comigo. Não me sinto deprimido. Sinto-me triste como sempre fui desde que descobri que podemos morrer. E mais tarde, desde que descobri que podemos mesmo Viver.

Fui descobrindo esse paradoxo. Talvez quando em puto montava, com os colchões tripartidos do campismo, uma espécie de caravana e punha lá dentro os meus melhores brinquedos, pegava num livro de viagens e via a Torre Eiffel, os chineses, o deserto. Esquecia-me que tinha pais. Queria partir. Viajar simplesmente, açambarcando-me de todos os outros, de todos os mundos. Já então a independência e a liberdade de ser quem e com quem quisesse. Renegar as raízes para as perceber. Desprender-me.

Mas viver desprendido de tudo mas amando a vida no seu esplendor mágico é contraditoriamente angustiante. Uma angústia espelhada em lágrimas que por vezes caiem nos momentos em que me sinto eternamente feliz. Lágrimas salgadas como as outras, que embora diferentes, não deixam de ser lágrimas. È essa contradição quase esquizoide, ou profecia plenamente auto confirmada pelo meu signo, Gémeos, que promove a minha desadaptação e a de muitos a estas vidas que vamos vivendo. Porque é injusto nascermos e termos a capacidade de amar e sabermos que podemos e nos podem morrer. É a mais cruel das injustiças, sabermos a verdade. Ou nos esquecemos disso, como a maioria o faz, alienando-se do sofrimento de pensar a vida tal como ela cruamente nos vestiu, ou adormecemos nisso e comungamos no sofrimento, cultivamos o desespero, revestimos de preto as nossas retinas cognitivas, emocionais. Eu não me revejo nem um nem noutro caso. Se calhar sinto-me como muita gente se sente, um estrangeiro na sua própria terra mas amando as diferentes pátrias e mátrias que a sorte me fez adoptar. Sinto-me como nos sentimos muitos de nós: estrangeiros. O nosso local natal nunca é este. Ao mesmo tempo poderíamos de ser de qualquer local, em qualquer época. Arrogantemente imortais, humildemente humanos por o sonharmos. O nosso local não tem coordenadas, fusos horários, curvas de nível, pontos de referência. Os compassos não o traçam, os caminhos não se cruzam nele. Somos estrangeiros nativos de um lugar que não carece de passado nem padece de futuro. Somos furagidos de uma vida que talvez nos sepulte mais que a própria morte. Com os seus infortúnios, os seus lindíssimos momentos, as separações, os seus ritmos cardíacos com e sem significado.

Apesar de imensamente felizes acho que muitos de nós, sofremos, ora no êxtase, ora na merda, por sabermos que existe uma morte que nos enterra e algumas ou uma vida que nos desterra. G.F.

quarta-feira, março 24, 2004

Ants Marching

Um grande banda e mais um dia que acaba. E a marcha continua amanhã. G.F.


Ants Marching

He wakes up in the morning
Does his teeth bite to eat and he's rolling
Never changes a thing
The week ends the week begins
She thinks, we look at each other
Wondering what the other is thinking
But we never say a thing
These crimes between us grow deeper
Goes to visit his mommy
She feeds him well his concerns
He forgets them
And remembers being small
Playing under the table and dreaming

Take these chances
Place them in a box until a quieter time
Lights down, you up and die
Driving in on this highway
All these cars and upon the sidewalk
People in every direction
No words exchanged
No time to exchange

And all the little ants are marching
Red and black antennas waving
They all do it the same
They all do it the same way

Candyman teasing the thoughts of a
Sweet tooth tortured by the weight loss
Programs cutting the corners
Loose end, loose end, cut, cut
On the fence, could not to offend
Cut, cut, cut, cut

Take these chances
Place them in a box until a quieter time
Lights down, you up and die


Dave Matthews Band


Patavino

Finalmente chegou o dia. Vou mesmo para Itália, Pádua, Padova, estudar durante 6 meses. O sonho já se desenhava a algum tempo e agora, depois da reunião de Erasmus e das inscrições ainda é mais tangível. Enquanto decido as cadeiras que lá vou fazer, onde viver, onde comer, descubro que os habitantes de Padova se chamam Patavinos. Em português patavino quer dizer parvo, idiota, pateta, basbaque. Existem coincidências, pois é. Mas o que é certo é que os italianos não são nada parvos. Senão, reflictam neste provérbio: «Depois do Jogo, o Rei e o Pião, voltam para a mesma Caixa.»G.F.

há 6 anos.

Gosto sempre de falar com o Vicente. Só o conheci durante 15 dias e hoje revê-lo, mesmo que virtualmente, é redescobrir a doçura das amizades dos meus 16 anos. Conversar com ele sobre aquele Verão é voltar às melhores memórias da minha adolescência. Fui procurar um texto sobre o último campo de férias que fiz, que eu e o Jepas escrevemos num Setembro de 98 resfriado de muitas saudades.
Quem nunca fez campos de férias, acampamentos, quem nunca esteve 15 dias e 14 noites, a dormir 4 horas, juntos sempre na mesma camarata, provavelmente não compreenderá o espírito que se cria e o sentimento de irmandade que nos acompanhará para a vida. Não quero hoje falar muito sobre isto. Só deixar aqui uma parte do texto com a qual me ri apaixonadamente. Por aqueles tempos, pela forma como gozávamos com todos e connosco. Ri-me da crueldade púbere com que apontávamos os defeitos uns dos outros. Reler aquele texto é lembrar-me fielmente de quem lá esteve, do seu aspecto, dos seus tiques, do que mais gostavam. É estar de novo com eles. Por isso, deixo aqui esta lembrança para os que lá estiveram comigo. Os que não estiveram, ou passem para outro post, ou se quiserem tentem imaginar uma dessas personagens com quem passei 15 dias fantásticos da minha vida. G.F.

(...)Dentro da camarata natal jazem os irmãos ping-pong, que, à falta de bolas e com a mania de perseguição dormem de olhos arregalados. Principalmente o mais novo, dotado de uma extrema falta de semelhança com os seres humanos, embora tenha saído pelo mesmo sítio que os outros, este possui características alienígenas dignas de efeitos especiais nos macabros episódios de Zé Files:
Começando pelo topo, é notória a falta e cabelo na amostra de crânio, resultado de duvidosas experiências não só biológicas como também mutantes. Esta escova revelava também uma outra complicação clínica: o excesso de quimioterapia à base de vaselina dos 300 para tentar um tumor maligno (embora no seu caso benigno) a partir do recto. Estes factos faziam sobressair as lunetas cor de alface equipadas com lentes regressivas barilux, presumivelmente contrabandeadas ao governo americano, mais propriamente do telescópio Huble. Este famoso acessório tinha ligação directa aos famosos abanos lobulares timpanais dignos de alimentarem as caldeiras nucleares de Chernobil. Há mesmo quem diga que foi desses orifícios que se extraiu toda a cera do Museu de Cera londrino. Lóbulos auditivos capazes de fazer inveja ao Dumbo e às parabólicas da RTP. A sua paixão pela música erudita levou-o a gastar somas astronómicas em phones feitos por encomenda à multinacional Boing. Não ficando atrás da imponência das outras formas de arte faciais da sua tromba expressionista neo-abstracionista e gótica, temos a penca reluzente. Digna de igualar as capacidades de olfacto de um suino, esta mini tromba (mini é eufemismo) conseguia detectar comida nas imediações de Vila do Conde e talvez no Porto. Mas um excelente apêndice aerodinâmico era constituído pelos dentes. Considerado pelos especialistas em enlatados do campismo internacional, como o maior rival dos abre latas modernos. E não só… Quando equipado com rodinhas, faz tournées pelos campos de golf europeus, aparando a relva dos mesmos só com os dentes. E para finalizar notava-se já uma voz de tom macho latino que destoava com o seu andar zombie tipo Homo SemiErectus. E o irmão? O irmão pronto, vindo do mesmo buraco, era irmão. (…)
J. e G.

Caricaturas

Hoje no Chiado vi uma rapariga lindíssima, provavelmente estrangeira (note-se não o preconceito sobre a possível fealdade ou não das portuguesas, mas o facto de trazer uma mochila de campismo às costas e o rosto nórdico aos ombros). Vinha a descer umas escadas rolantes e eu a subir. Ela olhou para mim e eu confesso que a primeira coisa que penso quando olham para mim é que devo estar com o cabelo muito mongolóide para ser notado. Baixei os olhos mas ainda me lembro do seu rosto. Pelo menos por um flash voltei a lembrar-me. Agora que o vislumbro mentalmente estou aqui a pensar que existem rostos tão belos que deve ser mesmo impossível fazer uma caricatura sua. Tenho de falar com algum caricaturista, perguntar-lhe se já alguma vez recusou algum trabalho. G.F.

Conversas. Sem o Nuno.

Agora que tudo está mais sereno volto ao Oráculo. E hoje volto simplesmente porque preciso mesmo. Quero acima de tudo que as minhas memórias dos últimos dias sejam aqui fotografadas. Para que não me esqueça do que senti se o destino me trouxer nova dor. Para me acalmar com alguma resposta que temos de ter mesmo nunca encontrando. Achei que agora era a melhor altura para falar da morte do Nuno. E dizer “morte do Nuno” é a frase mais estranha que escrevi. A frase mais seca. A frase mais fria. A frase mais absurda.
O Nuno não era meu amigo. Mas eu gostava do Nuno e acho que ele de mim. Ele disse-o algumas vezes, falou do meu futuro, sorrimos ambos do traçar de projectos para amanhã. Cumprimentava-me com um “grande Pintas!” e eu ficava feliz. Nesse momento o Nuno deixava de ser a pessoa fria e calculista que sempre duvidei serem mesmo traços da sua personalidade. Nesse momento sentia que o Nuno era um de nós, sentia também nele a fraternidade que se foi criando entre os (poucos) rapazes do nosso curso. O Nuno gostava da minha camisola dos escuteiros e perguntava-me sempre com interesse coisas dos escuteiros. Da sua organização, da estrutura, da dinâmica do grupo. Era das raras vezes em que falava com o Nuno. Das outras que estivemos juntos limitava-me a ouvi-lo. A absorver toda a cultura, todo o saber que ele conseguia transmitir em cada frase. O Nuno com a sua genialidade tornou-me ainda mais humilde. Nunca conseguiria ter o brilhantismo do Nuno. Ajudou-me a perceber os meus limites mas ajudou-me a alarga-los. Com ele aprendi. Verdadeiramente aprendi e era alguém em quem muitas vezes pensava. Associava e associo ainda a muitas coisas que oiço todos os dias. Falar com o Nuno, ou ouvi-lo, era discutir ideias, planar sobre pensamentos, dissertar sobre paradigmas. Mais que aprender novos conceitos era ter um colega que resumia toda uma cultura, todos os autores, todos os pensadores. O Nuno era um colega que em si encerrava muitos professores. De Estética, de Retórica, de História, de Geografia, de Psicologia Social, de Religião, enfim de tudo o que o Ser Humano se pergunta. O Nuno ensinava-nos tudo. E eu que nunca quis que ele se calasse estou agora aqui a escrever, depois do seu Fim.
O Nuno não me faz falta emocionalmente. Não quero parecer hipócrita. Como já disse a nossa relação baseava-se apenas nas tertúlias que eu e tantos tivemos com ele. O Nuno faz-me falta na construção do Pensamento, na procura das respostas ao comportamento humano que tantas vezes não encontrei nas aulas. Com o Nuno, bastava estar no bar para as ter. Uma mesa, uma hora que valia mais que quase todo um semestre de conteúdos programáticos. Fascinava-me descobrir o mundo tão particular dele. Fascinava-me a sua decadência fina, o seu snobismo, o seu sorriso cínico e superior sobre as coisas mundanas. O Nuno assustava-me porque talvez o que nos é diferente, assuste. O Nuno não era mesmo um de nós e ele sabia da sua inadaptação a esta pequenez de vida em que estamos metidos. Interessavam-lhes os pormenores de luxo, a erudição das coisas Belas. Foi alguém que provavelmente a maioria de nós nunca terá oportunidade de conhecer. A primeira recordação que tenho dele é a de quando, nas praxes, nos falava do perfume característico do pinho dos fósforo da Davidoff. Saboreava os prazeres mais refinados e ao mesmo tempo vivia desprendido. Das coisas, de nós, dele.
A única consolação que tenho no meio disto. E também me é tão ridículo procurar serenidade, é a de ter dito frente a frente, que gostava dele. Mesmo conscientemente bêbado, disse-lho, tal como disse a todos de quem gosto e que hoje mais que nunca tenho medo que me desapareçam. E que também tenho medo de desaparecer e deixar alguém no estado em que estamos. Disse-lhe o que sentia e, ao menos isso: enquanto o Nuno existiu soube-o de mim. Gostava que ele tivesse sentido esse gostar. Nunca o saberei.
Não acredito que o Nuno esteja em alguma parte. O Nuno deixou de existir. Como quis. Mas nós existimos e os amigos especialmente, a família estão a sofrer. È com eles que lembramos o Nuno, parte das nossas vidas. O Nuno morreu por vontade própria mas os que tínhamos a vontade de o ter, ainda nos perguntamos porquê. Porquê a falta de amor por esta vida?; porquê agora?; porque é que não conseguimos prever?… Mais uma vez e também no fim, somos sempre nós que continuamos a perguntar. O Nuno, pelo contrário, sempre soube responder.
Mas mesmo morrendo, como quis, não nos morreu. Foi como se tivesse ido de férias para a neve e voltasse amanhã. Chegasse ao bar e começasse a falar eloquentemente de Camus ou de sexo oral, de economia ou do ponto “g”. Mesmo sabendo que a viagem foi feita irreversivelmente isto tudo surge-nos como um sonho esquisito. Como se a notícia que me deram “Já sabes o que aconteceu?” tivesse sido argumento de um pesadelo antes de acordar para mais uma tarde de aulas, de conversas no bar. Conversas com o Nuno.
É tudo frio, absurdo e estranho. A sua morte, o funeral, a falta de amparo que todos sentimos. Nos últimos dias senti-me pequeno. Sem protecções perante esta fatalidade que é perdermos alguém que conhecemos. E se me sinto assim hoje, imagino quem o amava, os avós, os pais, os amigos. A estes, em particular aos que também são meus, ao Francisco e ao José Miguel queria aqui deixar aqui o meu apoio. Mais que a minha dor e o meu luto pela morte do vosso amigo deixo aqui uma palavra de coragem e uma vontade de os abraçar como raramente sinto. Porque enquanto não chorarmos tudo o que houver para chorar, precisamos uns dos outros. Nem que seja para descobrirmos que somos mesmo uns sentimentalistas de merda, que não falamos só dos golões do Sokota, da lei de financiamento do ensino superior ou das generosas mamas da Guida. Pois o que é que agora nos resta fazer? Viver. G.F.


quarta-feira, março 03, 2004

Com carácter de urgência.

Peço desculpa por não andar a escrever mais que algumas linhas. Por não ter qualquer fio condutor para um debate intelectual sobre o quotidiano. Não descortinar palavras sobre os pequenos nadas que vamos vivendo. Continuo embasbacado, quero apenas contemplar. Aprendo muito mais quando oiço do que quando falo, portanto resta-me entregar às palavras belas de outros que viveram e souberam tão bem e tão mais que eu. Porque mais uma vez mais vale estar calado e julgarem que somos mesmo estúpidos que pegar no teclado e acabar com todas as dúvidas. Assim, aqui fica este poema que descobri através da T.S.F. numa emissão mítica ao jeito de Orson Welles e a sua "Guerra dos Mundos". Imaginem o poema como se estivesse a ser narrado por um repórter, a notícia fosse realmente verdadeira, réus, testemunhas, tribunais, carrascos, ganhassem vida e falassem aos microfones. Com a entoação que quiserem, meditando na beleza da notícia, aqui vos deixo um poema muito conhecido, que me faz simplesmente chorar... G.F.

A invenção do amor

Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares, à porta dos edifícios públicos, nas janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de aparelhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor.

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia quotidiana.

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio. A descoberta. A estranheza
de um sorriso natural e inesperado.

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna.
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo.

Um homem e uma mulher um cartaz denuncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou. A TV anuncia
iminente a captura. A policia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e nas avenidas.
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta fechada para o mundo
É preciso encontrá-los antes que seja tarde.
Antes que o exemplo frutifique. Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia.

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos.
Chamem as tropas aquarteladas na província!
Convoquem os reservistas os bombeiros os elementos da defesa passiva
Todos decrete-se a lei marcial com todas as consequências!
O perigo justifica-o. Um homem e uma mulher
conheceram-se amaram-se perderam-se no labirinto da cidade.

É indispensável encontrá-los dominá-los convencê-los
antes que seja tarde
e a memória da infância nos jardins escondidos
acorde a tolerância no coração das pessoas.

Fechem as escolas. Sobretudo
protejam as crianças da contaminação.
Uma agência comunica que algures ao sul do rio
um menino pediu uma rosa vermelha
e chorou nervosamente porque lha recusaram.
Segundo o director da sua escola é um pequeno triste inexplicavelmente dado aos longos silêncios e aos choros sem razão.
Aplicado no entanto. Respeitador da disciplina.
Um caso típico de inadaptação congénita disseram os psicólogos
Ainda bem que se revelou a tempo. Vai ser internado
e submetido a um tratamento especial de recuperação.
Mas é possível que haja outros É absolutamente vital
que o diagnóstico se faça no período primário da doença
E também que se evite o contágio com o homem e a mulher
de que fala no cartaz colado em todas as esquinas da cidade.

Está em jogo o destino da civilização que construímos
o destino das máquinas das bombas de hidrogénio das normas de discriminação racial
o futuro da estrutura industrial de que nos orgulhamos
a verdade incontroversa das declarações políticas.

...

É possível que cantem
mas defendam-se de entender a sua voz. Alguém que os escutou
deixou cair as armas e mergulhou nas mãos o rosto banhado de lágrimas.
E quando foi interrogado em Tribunal de Guerra
respondeu que a voz e as palavras o faziam feliz
lhe lembravam a infância Campos verdes floridos
Água simples correndo A brisa das montanhas.
Foi condenado à morte é evidente. É preciso evitar um mal maior.
Mas caminhou cantando para o muro da execução
foi necessário amordaçá-lo e mesmo desprendia-se dele
um misterioso halo de uma felicidade incorrupta.

...

Procurem a mulher o homem que num bar
de hotel se encontraram numa tarde de chuva.
Se tanto for preciso estabeleçam barricadas
senhas, salvo-condutos, horas de recolher
censura prévia à Imprensa, tribunais de excepção
Para bem da cidade, do país, da cultura,
é preciso encontrar o casal fugitivo
que inventou o amor com carácter de urgência.

Os jornais da manhã publicam a notícia
de que os viram passar de mãos dadas sorrindo
numa rua serena debruada de acácias.
Um velho sem família a testemunha diz
ter sentido de súbito uma estranha paz interior
uma voz desprendendo um cheiro a primavera
o doce bafo quente da adolescência longínqua.


Daniel Filipe, 1961

Il Postino


Hoje estou doente. Fisicamente. Foi o frio. Não há melhor alibi que a doença para nos deitarmos a ouvir o que mais gostamos. Banda Sonora "Il Postino". Das colunas surge-me o carteiro, a sua bicicleta, a deslumbrante paisagem de Salina, Neruda. Relembro o filme, a época em que o vi, o 10º ano quando li o pequeno e simples livro. Revi-me no Mário, que dizia estar cansado de ser apenas um Homem. Os sons gravados, e uma pergunta ao ouvir, entre outras, "Milonga del Poeta": Se o mundo inteiro for uma metáfora, é metáfora do quê? G.F.

segunda-feira, março 01, 2004

Responsabilidade é o que nos falta.


tenham medo...

Senhoras e senhores, meninos e meninas, respeitável público, o Circo Portugal apresenta, para gáudio de todo o terceiro mundismo promíscuo futebolizado lusitano acefalopolitizado, um homem, um Senhor, mestre da boa educação nortenha, guru da sanidade mental autarca... Depois dos palhaços, dos domadores, dos ilusionistas, vindo não de Inglaterra como todos os esquemas de segurança internacional suspeitavam, mas sim de Marco de Canavezes, apresentamos com orgulho, o arquétipo do HOOLIGAN PORTUGUÊS..... Avelino Torres! E que a palhaçada depois continue!




RELES BASBAQUE

«Não, não foi um acto violento nem nada que se pareça, sabe porquê? Porque eu não queria dar um pontapé na placa, queria era tê-lo dado a quem nomeou o árbitro.»


Um dia fraco

Há dias fracos. Há outros fortes. Estes têm sido os primeiros. De complacência e sem notáveis «empreendimentos». Sem fios condutores e metas ainda por esboçar. São dias sem palavras e também sem silêncios. São dias tristes aqueles que esperamos que passem. Nem dias são. São resquícios de tardes e noites polvilhadas de parêntesis e de reticências. Sensação de que se poderia ter feito bem melhor. Ou melhor, que se poderia ter feito alguma coisa. Não acredito que seja o único a viver dias assim. Essa singularidade não existe, faço parte dessa tribo diletante, que ainda estuda e vive do fundo monetário parental. Resolve os problemas na pressão da véspera, acredita em milagres académicos, dá a volta ao sistema, apodera-se dos seus fracos. Tribo que vai passando, remediando os anos, sem os perder mas talvez sempre meio perdida. E recomeçam os semestres, as mesmas revivências sempre acompanhadas da vontade de partir, livre, pelas estradas, afinando azimutes pela simples descoberta sem deveres. Mas à procura de estradas serpenteadas. Toda a gente que viaja, especialmente a que caminha a pé, reconhece a monotonia de uma recta. A maravilha e a surpresa nascem depois de uma curva desconhecida ou da decisão numa encruzilhada. E vai-se caminhando, ao frio como hoje o tenho, ao vento como agora sopra, à fome de um lanche que se vai adiando, à procura de um vulcão adormecido, quiçá na próxima curva. G.F.


Romance de um dia de estrada

Andava há já vinte dias
ao frio, ao vento e à fome
às escondidas da sorte
um dia fraco, outro forte
qu'o dia em que se não come
é um dia a menos pr'á morte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte

Quando um barulho de cama
a voltar-se d'impaciente
me fez parar de repente
era noite e o casarão
não tinhas lados nem frente
dentro havia luz e pão
Me fez parar de repente
Me fez parar de repente

Ó da casa, abram-m'a porta
fiz as luzes se apagarem
cheguei-me mais à janela
vi acender-se uma vela
passos de mulher andarem
e uma mulher muito bela
chegou-se mais à janela
chegou-se mais à janela

Não tenhas medo, eu não trago
nem ódio nem espingardas
trago paz numa viola
quase que não fui à escola
mas aprendi nas estradas
o amor que te consola
Trago paz numa viola
Trago paz numa viola

Meu marido foi pra longe
tomar conta das herdades
ela disse "Companheiro"
eu disse "Vem", ela "Tu primeiro"
"Tu que me falas de estradas"
"E eu só conheço um carreiro"
Ela disse "Companheiro"
Ela disse "Companheiro"

A contas com a nossa noite
afundados num colchão
entre arcas e um reposteiro
descobrimos um vulcão
era o mês de Fevereiro
e o Inverno se fez Verão
Descobrimos um vulcão
Descobrimos um vulcão

E eu que falava de estradas
e só conhecia atalhos
e ela a mostrar-me caminhos
entre chaminés e orvalhos
pela manhã, sem agasalhos
voltei a rumos sozinhos
E ela a mostrar-me caminhos
E ela a mostrar-me caminhos

Andarei mais vinte dias
ao frio, ao vento e à fome
às escondidas da sorte
um dia fraco, outro forte
qu'o dia em que se não come
é um dia a menos pr'á morte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte
Um dia fraco, outro forte

Letra e música: Sérgio Godinho
In: "Sobreviventes"; 1971