segunda-feira, dezembro 27, 2004

"Os demitidos"

Fazia falta animar a malta e no dia em que me chegaram as novas deste ânimo estava a entrar na cantina "Murialdo" em Pádua. Foi o Tiago que chegou junto a mim e sem me cumprimentar, disse-me: «O governo caiu», mostrando-me uma mensagem de telemóvel vinda há pouco de Portugal. E a noite dionisíca foi longa, brindando de ponta a ponta toda a coligação.
Sabendo Pessoa, um espanhol estudante de filosofia comentou-nos que hoje «afinal alguém se tinha perdido...» Sorrimos e fizemos mais um brinde aos "demitidos". Não é todos os dias que longe da pátria nos chegam boas novas de mudança.
Agora que estou de regresso por aqui,quase que imagino Santana e Portas, a dupla já sem trono, entrar na próxima estação de metro e cantarem um para o outro (em jeito de parelha romântica) a música do novo Palma que agora os meus auscultadores exalam ironicamente... G.F.


Estás demitido, obviamente demitido
tu nunca roubaste um beijo
e fazes pouco das emoções
és o espantalho dos amantes.
Estás demitido, obviamente demitido
evitas a competência
não reconheces o mérito
és um pilar da cepa torta
E assim vamos vivendo

na província dos obséquios
cedendo e pactuando enquanto der
filósofos sem arte, afugentamos o desejo
temos preguiça de viver
Estás demitido, obviamente demitido

subornas os próprios filhos
trocaste o tempo por máquinas
tu és um pai desnaturado.
Estás demitido, obviamente demitido
arrasas a obra alheia
às vezes usas pseudónimo
tu és um crítico de merda
E assim vamos vivendo...
Estás demitido, obviamente demitido

encostas-te às convergências
nunca investiste num ideal
tu sempre foste um demitido
tu foste sempre um demitido

já nasceste demitido!

Os demitidos, "Norte"
Jorge Palma, 2004

sábado, dezembro 25, 2004

Let me sleep

Uma música de Natal, em inglês, da minha banda preferida. Porque me identifico com a letra e porque é bonita.

Cold wind blows on the soles of my feet
Heaven knows nothing of me
I'm lost nowhere to go
Oh when I was a kid oh how magic it seemed
Oh please let me sleep it's Christmas time
Flowered winds was where I lived
Thought you burned not froze for your sins
Oh I'm so tired and cold
Oh when I was a kid oh how magic it seemed
Oh please let me sleep it's Christmas time
Oh oh when I was a kid oh how magic it seemed
Oh please let me sleep it's Christmas time
Oh oh when I if I was a kid oh how magic it seemed
Oh please let me dream it's Christmas time

1991, Vedder
Este ano nem sequer enviei mensagens, limitei-me a passar um simples e feliz natal, partilhado de conversas. O que tenho a dizer sobre o Natal, disse-o o ano passado neste Oráculo e hoje volto a publica-lo. Porque sinto exactamente o mesmo que há um ano. Talvez fizesse algumas correcções mas agora estou a comer rabanadas e o tempo escasseia quando voltamos gostativamente aos sabores da terra e nos perdemos nos glícidos lusos sabores. Antes de fazer o banal copy paste, cito uma amiga minha que sem querer disse uma frase que resume na perfeição todo o sentimento frustrante pós-natal: «Que vida a minha, até nas calças de pijama tenho de fazer baínha».G.F.
Dia 25 de Dezembro, Natal. Já não acordo de madrugada para correr para a árvore enfeitada em busca dos presentes que misteriosamente alguém fazia o favor de me oferecer. Essas entidades ou mágicas ou suspeitosamente parentais acertavam sempre no que queria pois também as escolhas eram sempre poucas e bem definidas. Já não me deito a 24 com a ânsia de adormecer rápido e acordar como um flecha disparada em direcção à sala. Já não acordo para um dia pleno de liberdade, um dia passado inteiramente a brincar satisfeito. Então, consumia-me em jogos, deleitava-me com as peças por montar, gritava e saltava comovendo-me a cada descoberta camuflada debaixo dos embrulhos rasgados.
Já cresci um bocadinho mas o que o passar dos anos inevitavelmente me tirou hoje ajuda-me a sorrir quando me revejo na cara dos que realmente vibram com esta data especial, os pequenos. A eles o Futuro, a eles os presentes. Aos outros, resta-nos a esperança que não tenham perdido essa pequenez, que ainda comunguem réstias de inocência. Porque ainda há muitos dos outros que teimam em escrever e refazer o Natal. Têm que o pintar sempre de novas formas obcecados pela originalidade, pela melhor forma de chegar a um maior número. Escrevem e rescrevem, consomem, vendem e reciclam o tema, até à exaustão. Há outros que começam a trabalhar meses antes, idealizando montras, desenhando luzes, enfeites, jogos de som. Tudo tornam eléctrico, computorizado, maquinal. Constroem sonhos em plásticos e metais. Hiperbolizam emoções em jogos para consolas. Os fazedores de notícias seleccionam as que melhor espelham a pobreza que nesta quadra de luxúria assume lugar de obsceno destaque. Uma vez por ano, a paz. Uma vez por ano, o amor. Uma vez por ano lá se embala Jesus. Uma vez por anos os outros lembram-se que há outros porque é slogan o fazerem. E nós, já também somos aos poucos já os outros que são muitos. Vamo-nos esquecendo do silêncio num mundo de infinitos estímulos. Onde a plenitude das chamas dos madeiros na noite fria das aldeias nos deixou de aquecer, substituída pelas televisões ligadas nos urbanos apartamentos. Onde a tradição ainda é o que era mas sem se perceber porque é. Talvez o limite que estamos a chegar nos desperte a vontade de travar este ritmo frenético. Parar de deitar mais lenha, apreciar o rubro das brasas ténues. Talvez nos próximos Natais não sinta necessidade de escrever mensagens de Natal pois já o fiz e tentei mudar em mim o que nelas critico ou realizei os sonhos que nelas tracei durante o resto do ano. E é tão grande esse resto…
Já não acordo de madrugada, deito-me de madrugada. Mas ainda sou feliz no meio do torpor desta melancolia natalícia. Há felizmente o cheiro dos livros oferecidos, bilhetes por obliterar numa viagem desconhecida por fazer. Há os sonhos que ganham sabores, as rabanadas, a canela. Há os saltos de alegria e a cara de basbaque do meu primo depois de receber um barco de piratas. Existe a infância dos meus tios e dos meus pais. Existem as vitórias ao “Pictionary” das orgulhosas gerações vindouras que no “Trivial” levam baile dos quase reformados.Existem coisas pequenas, mesquinhices, consumos, mensagens de telemóvel banais repetidas para a lista completa de contactos. Existem pequenas guerras como em qualquer família. Mas nós, os que podemos ler blogs, carregar 70 vezes no “enviar sms”, comprar o último perfume da Hugo Boss, passar o ano em Barcelona, temos mais que algum conforto financeiro: temos segurança e esperança. Nós temos Futuro, mesmo desconhecendo-o. Há outros, estes também muitos, sem quaisquer horizontes. Como diria Sidónio Muralha: «Hoje é dia de Natal, mas quando será de todos?».G.F.

segunda-feira, dezembro 13, 2004

"mulher de Famalicao"


Tem-se a necessidade de escrever para outros, para outro. Podemos enganar-nos e dizer que imprimimos palavras vendo-nos como receptores, mas a verdade è que se publicamos, se temos um blogue, é porque existe uma segunda pessoa a quem gostariamos de contar uma estoria, um desabafo. Eu pelo menos tenho descoberto isto, que escrevo para apenas algumas pessoas. Construo publicos, audiencias, espectadores reais ou hipoteticos. Depois sento-os na minha mente, frente a uma janela do internet explorer e espero que me ouçam, me leiam. Compreendendo-me ao mesmo tempo que vao sorrindo, imagino.

Na verdade acho que depois de ler todos os posts do ultimo ano e meio chego à quase certeza que apenas vislumbrei um vulto, sentado talvez ao meu lado, que realmente gostava que me lesse. Os outros, poucos, foram e sao talvez apenas « alguens » que gostava que soubessem do que ando a falar hà tanto tempo com esse vulto. Nao vos falo de um amigo imaginario mas um vulto feminino, sem rosto e sem aspiraçoes eternas a musa pessoal. Apenas uma mulher ainda com um vèu sobre o olhar da alma, um veu que ainda nao tive oportunidade de destapar.

Sim, enganei-vos. Sempre fiz de vos personagens secundarias, alguns quase figurantes daquilo que sempre quis dizer à protagonista de uma personalizada doce epopeia idilica, lenda de todas as lendas de amor. Durante este tempo sempre escrevi sobre tudo, mas a intensa verdade è que a força motriz impulsionadora da escrita nao foi a tentativa de descoberta de novas teorias sociais, nao foi a procura da denuncia do sofrimento ou da alegria da humanidade, nao foi a partilha de poemas ou imagens de basbaques geniais. Foi sim a eterna e terna seduçao atraves da escrita. O engate puro em forma de grafemas de plastico. Nao quis iniciar qualquer discussao intelectual : quis encontrar alguma mulher que amasse o que escrevesse. Que me amasse conhecer.

Peço perdao a todos os que nao compreendem o facto de tudo o que alguns homens fazem ter a ver, em ultima analise, com as mulheres. Que muitos de nos (ou talvez jà poucos) imaginamos travessias solitarias no desertos de relaçoes faceis para encontrar o oasis de alguem especial. Que as nossas verdadeiras ambiçoes se resumem à tentantiva que uma rapariga, sempre a mesma, exista, ao final de cada noite, nos oiça, nos confidencie que fomos e somos felizes nesse presente. Que nos realmente conheça e goste muito do que conhece. Esta è a simplicidade que todos nos, os que buscamos um braço suave no ombro, auguramos : adormecer feliz no silencio de dois sorrisos, sem adverbios, sem adjectivos, sem adversativas. Nao queremos ser peritos em engenharias do quotidiano, nao queremos ser pragmaticos quando as noites caem, nao queremos razoes que tantas encruzilhadas nos traçam. Tentamos subir às estrelas que de vez em quando podemos ver, fugir de multidoes em direcçao a lugares inospitos feitos de amor entregue.

Uns somos bebados, outros somos apaixonados, outros somos poetas, bebemos a vida ora com sofreguidao ora boiando desatentos. Uns escrevem, outros pintam, outros compoem, esculpem, actuam, dançam para e por alguem que apaixone por si. Que se apaixone perdidamente por si. Uma mulher, um homem, o mundo.

Por tudo isto considero a maioria das minhas palavras, meus restos mortais, que aqui deposito, como engrenagens feitas de rodas dentadas de engate discreto, puro, às vezes patètico, outras vezes magico. Se esta inspiraçao fosse um exercito, seria um exercito de automatos programados com todos os meios tecnologicos ainda por inovar para encontrar a felicidade no corpo de uma mulher. Uma mulher bonita. E bela, tambem. Porque o corpo pede sempre um pouco mais de alma. Preciso inconscientemente de conquistar, de impressionar o mundo inteiro, de fazer amor com ele na forma de uma mulher especial. Primeiro seduzindo-o, enlouquecendo-o, desarmando-o, amando-o, consumindo-o selvatica e urgentemente com uma doce lentidao. Preciso de haver o fado afortunado de usar esses momentos em que todas as vestes materiais e imateriais se despem e por segundos conseguimos responder com toda a certeza a todos os porquês do Universo. Segundos de infinito turbilhao de sentidos, desprovidos de ansias, de medo, de perceptos, de construtos, de gramaticas, de linguagens. Neste pleno e pequeno mito que se torna o tudo, vive a meta da minha escrita. Na tentativa de o buscar, evado-me e esqueço-me das nossas vidinhas onde transbordam tantas emocoes faceis de consumir. E vai dando para viver numa vaga esperança de que tudo terà essa mudança, de que um dia posso tirar a mao do queixo.

Redescubro tudo isto aqui longe de Portugal, nao por estar melancolico, ou triste, ou sozinho mas por redescobrir que afinal tudo deriva ou tudo acaba no mesmo. Que o mais importante existe em mente nos minutos antes de abrir ou fechar os olhos, sozinhos na obscuridade.

Depois das noites de perdiçao nos braços de mulheres vulgares, lugares bonitos num mapa europeu, mas com nomes e passagens faceis de esquecer, redescubro que me faz falta uma Capital onde pousar a mochila, querer permanecer. Provavelmente faço a cronica de uma morte anunciada : o final da escrita neste blogue acontecerà no dia em que encontrar esse Porto de Abrigo. Porque nao precisarei de viajar mais, ou melhor, porque a viagem que foi este blogue nao terà o mesmo sentido. Porem, agora tem sentido, e assim mais tarde ou mais cedo aqui escreverei novamente coisas diferentes, consciente ou inconscientemente procurando o vosso ou o teu amor.

Um amor que poderei encontrar aqui em Italia, ou quase certamente que nao :
Como diria um grande amigo, cumplice de noites de Bairro, afortunado ha pouco tempo nesta busca que ambos partilhamos : « essa mulher para amar deve estar em Portugal, quem sabe provavelmente numa cidade pequena, talvez em Famalicao » - Tem sido isso que me tem faltado, nunca estive nem nunca conheci ninguem de "Famalicao". G .F .

sábado, novembro 27, 2004

Pessoa

Aqui de longe, ainda sinto essa anima portuguesa. E hoje sinto-me Pessoa:


A terra é feita de céu
A mentira nao tem ninho
Nunca ninguém se perdeu
Tudo é verdade e caminho.

quarta-feira, setembro 22, 2004

Os verdadeiros Ídolos

Quem encontrou a seguinte foto devia ser estatificado numa praceta de renome mundial. Deixo aqui um raro momento de caderneta dos anos 80. Uma prenda para os putos do meu tempo, para os que ainda se lembram dessa altura em que havia qualidade na televisão e na música nacional. Esta selecção não é uma montagem. Eles estavam juntos de facto, talvez numa tarde de Agosto de sardinhadas antes de um concerto num reboque de tractor. Ai o tempo que passou e que não volta mais...
Deixo uma pergunta no ar: Não vos assusta pensar que aqueles que vos trouxeram ao mundo e vos educaram durante anos a fio, usavam calças, saias, penteados, óculos ou meias como os deles e ainda por cima os tinham como Ídolos? G.F.

A seu tempo anunciarei um novo blog onde escreverei memórias da minha futura estadia em Itália. Parto dia 29 pela madrugada e o tempo que tenho dedicado a aparelhar-me tem dificultado a publicação de alguma coisa aqui. Não vou deixar de olear a maquinaria deste Oráculo, há e sempre haverá algo universal com que me embasbaque. Contudo, presumo que nos próximos meses a minha vida vai girar à volta dessa experiência única que é fazer Erasmus portanto parte dos meus sentires terão que ver com ela. E como desse sentir específico nascerá a necessidade de uma escrita mais ao jeito de um relato de viajante, assim o farei em local próprio. Voltarei aqui de tempos a tempos. Como sempre sem compromissos.

Peço também desculpa por ter deixado tanto tempo o último post que foi meramente um desabafo, e que não pretendeu levantar qualquer discussão ideológica, política, constitucional. Para terminar a polémica do "barco do aborto" deixo poesia na forma de uma refrão de música tradicional portuguesa pelo grupo "Quadrilha". Da sabedoria popular nascem refrões como este, que dedico ao Ministro da Guerra, Paulo Portas:

« O mar não é de ninguém
Ninguém é dono do mar
Nem aqueles que lá sabem navegar
»

quarta-feira, setembro 01, 2004

A vergonha de aqui.

Aqui não existe formação. Aqui não existe educação sexual nas escolas. Aqui não existem patrocínios para campanhas de planeamento familiar para os adolescentes. Aqui não existem audiências televisivas para programas informativos de serviço público sobre a prática abortiva: vê-se antes os “Morangos com Açúcar”. Aqui não se fomenta o estudo de teologia, ética, ciência. Aqui existe a informação do boca a boca, da amiga que disse e da que não disse. Aqui existe uma juventude desqualificada em que nos locais onde mais desqualificada é, mais desqualificada é a sua ascendência. Aqui existem mulheres a morrer na clandestinidade. Aqui existem mulheres a sofrer muito antes, durante e depois, durante anos, sempre. Aqui existem políticos que fazem da dor dos outros a sua bandeira, as suas cassetes, ao mesmo tempo que os seus antagónicos dissertam filosoficamente sobre o que é a vida e conseguem-na definir categoricamente sem qualquer dúvida. Aqui existe o julgamento público, a condenação legal e social, a criminalização humilhante de alguém que teve de tomar a decisão horrenda, por si só um fardo vitalício na sua consciência, a decisão de acabar com a vida de um futuro filho, num vão de escada, secretamente. Aqui existem parteiras desqualificadas a fazer fortunas e tráfico de pílulas abortivas ilegais que chegam a custar o ordenado anual de quem as compra. Aqui esconde-se um problema grave social e nacional com uma viagem a Badajoz. Aqui existe uma classe que mata recalcando o pecado em condições luxuosas e outra que morre desonrada na precariedade. Aqui fazem-se livremente orgias de sexo e cocaína em iates de pavilhão estrangeiro ao largo de Vilamoura, Sagres, Lagos, Funchal. Aqui existem contas de ministros em paraísos fiscais, esquecimentos de alguns euros em declarações de I.R.S., corrupção em Câmaras Municipais, derrapagens em obras públicas, escolas a fechar por falta de meios, professores recolocados 3, 4 vezes, universidades sem papel higiénico ou com tectos a cair, estádios de futebol novos e vazios, jaguares impunes a velocidades excessivas. Mas aqui existe dinheiro para que duas fragatas da armada, percam tempo com um barco de 6 tripulantes. Aqui presumem-se criminosos antes de ser praticado qualquer crime. Aqui são revistados pidescamente barcos, carros, na ânsia de encontrar 100 gramas de haxixe, pílulas do dia seguinte, cds piratas ou presuntos roubados, enquanto comandantes de bombeiros, policias fazem passeios de helicóptero patrocinados pelo contribuinte cumpridor. Aqui os centros das cidades são comprados com capital espanhol ao mesmo tempo que seis activistas holandeses põem em causa toda a soberania nacional. Aqui morre-se nas listas de espera dos hospitais, nas estradas, nas pontes, ao mesmo tempo que seis holandeses pacifistas colocam em risco toda a nossa saúde pública. Aqui não existe celeridade na justiça, seriedade nos meios de comunicação social, educação nas massas, dignidade na governação. Aqui deixou de existir progresso, o encontro com o que se quer de um mundo global, democrático, transparente, evoluído.

Aqui em Portugal neste momento existe a merda. A merda da Hipocrisia. Aqui em Portugal toda a gente vê a merda só que já não existe vergonha. Mas eu sinto-a. G.F.

diferenças

Ontem à noite presenciei um momento ilustrado, uma fotografia quotidiana, uma curtíssima metragem urbana que poderia pertencer a um catálogo qualquer sobre a temática das diferenças de classes. Enquanto uma senhora que é mãe de um toxicodependente que andou na minha escola, coxa e feia, carregava cansativamente 4 sacos pesados do minimercado Dia subindo a ladeira que passa à frente do prédio onde vivo, um qualquer vizinho meu confortavelmente esperava que 2 rapazes acabassem de descarregar a carrinha de compras ao domicílio do hipermercado Continente. Os dois ou três segundos que ela ficou a olhar para a carrinha falam por si. G.F.

a folha cinco

Nada consta

Falta-me a folha cinco
E entretanto a barba foi crescendo
a minha barba veio crescendo ferozmente
indiferente à morte de um ou outro amigo
às letras protestadas aos desgostos domésticos
às viagens lunares às convenções às lutas
Quando as coisas se erguem contra o homem
se eriçam agressivas contra ele
nem ao poeta basta o parapeito das palavras
Eu por exemplo homem de pouco tempo
trazido pelos dias aqui estou
Continuo a dizer: se alguma coisa há
que podias perder e ainda não perdeste
de que já a perdeste podes estar derto
Falta-me a folha cinco
Estou com a barba feita
Ainda este ano talvez em marienbad
eu vi mulheres curtidas pelos lutos
Mal de morte é o meu
em plena posição de pé às três da tarde
em meio do movimento do rossio
sentado à tarde no cinema em dias de semana
Já caem carnes já se perdem pêlos
já quase só me resta a devoção
lisboa certos dias um amigo às vezes
Poucas coisas importantes pensei durante a vida
uma mesa de sol em pleno inverno
um mar incontroverso alguns papéis
- continua a faltar-me a folha cinco -
pois apesar de tudo nada consta


Ruy Belo
"País Possível"
Editorial Presença

Videoclube

Descobrimos que afinal até não moramos numa terra muito atrasada quando nos vemos a discutir com o empregado do clube de vídeo o final perturbante do Dogville. G.F.

Nacionalidade



Entre as memórias que tenho de todas as viagens a Espanha uma é a música. Passando a fronteira só se ouve música espanhola. Maioritariamente música pop que traduzida não tem mais qualidade poética que trabalhos do nosso Toy ou da Micaela. Talvez o salero com que é temperada lhe confira mais qualidade. De facto deixa de se ouvir para lá de Elvas ou Valença música anglo-saxónica nas rádios e nas ruas. Os próprios nomes das bandas americanas e inglesas são traduzidos para castelhano. A verdade é que nem a própria juventude espanhola que conheci nas férias parece gostar de ouvir outra música que não a sua. Conhecem poucos nomes internacionais, mal trauteiam as canções mais conhecidas.

Antigamente julgava que isso era uma mistura de pouca abertura, excesso de orgulho nacional ou mesmo um pouco de ignorância. Numa das noites em que estive na praça da Catedral de Santiago de Compostela, naquela roda de amigos e guitarradas que fizemos depois do fogo de artifício monumental do Xacobeo, descobri que era algo mais que isso ou diferente disso. Quando perguntámos a um dos espanhóis se sabia cantar alguma música inglesa ele respondeu que não: «solo sei e solo me gusta cantar lo que sinto ca dientro, e lo que sinto es España.».
Descobri mais uma vez que nós em Portugal tristemente ou não, não somos só portugueses. G.F.

domingo, agosto 29, 2004

Atenas 2004

Quanto aos Jogos Olímpicos de Atenas, três desejos para o futuro: que troquem o Gabriel Alves por qualquer um dos comentadores da ginástica rítmica; que a Universidade de Pádua tenha selecção de voleibol feminino; que eu saiba sempre a nacionalidade de um amigo do alheio que me quiser destituir dos meus bens monetários (não vá eu dar-lhe um soco na genitália, fugir e descobrir 9 segundos depois que é nigeriano.) G.F.

E gajas?

Entretanto para responder à pergunta de cariz antropológico “ Atão e gajas?”. Nenhuma. Os melhores amores começam ou recomeçam sempre no Outono. Portanto continuo com a minha obsessão ridícula na demanda de um Amor verdadeiro. Descobrir a tal Princesa. (Uma como a Charlotte Casiraghi vinha mesmo a calhar, acho que ficávamos tão bem um com o outro.) G.F.

Mapas

Ontem voltei de cá. Da nossa terra e de terra nostra. De Portugal e da Galiza. Neste último domingo, dia último de férias, apenas passo ao papel os substantivos próprios apontados entre quilómetros de asfaltos percorridos. Nomes que por si só ilustram belos momentos estivais. Um itinerário de gargalhadas, conversas e silêncios. Muita música. As várias estórias não são para ser contadas aqui mas relembradas num amanhã em rodas de amigos. Ficam então os lugares retornados nossos por onde Agosto me levou num caminho que se fez caminhando ao sabor dos verdes, amarelos e vermelhos dos mapas:
Santa Cruz. Areia Branca. Baleal. Aljezur. Arrifana. Monte Clérigo. Carrapateira. Sagres. Praia da Luz. Galé. Armação de Pêra. Leiria. Aveiro. Porto. Braga. Viana do Castelo. Moledo. Cerveira. La Guarda. Baiona. Vigo. VilaGarcia. Catoira. Boiro. A Pobra do Caraminhal. Santa Uxia da Ribeira. Porto do Son. Noia. Santiago de Compostela. A Corunha. Lugo. Ourense. Valença do Minho. Vila Verde. Vila Real. Guarda. Arrifana. Castelo Branco. Estreito. Sesimbra. Aldeia do Meco. E regressar a Lisboa pela Ponte 25 de Abril num sábado de sol. G.F.

domingo, agosto 08, 2004

evasão

Há uns 5 anos atrás, no lugar onde agora estou a escrever, havia uma cabine de telefone. As filas para telefonar eram enormes e as pessoas chegavam mesmo a conhecer-se nessas esperas. Hoje todos têm telemóvel e a cabine deu lugar a um pequena secretária de pinho, um pc com ligação à internet e a fotografia de um algarvio a puxar um burro, intitulada "cena campestre". Aqui em Aljezur o progresso vai chegando devagarinho como uma maré que sobe, como esse burro teimoso da fotografia. Mesmo com telemovéis as pessoas desligam-nos e continuam a conhecer-se. Agora noutros locais.
Tornamo-nos semelhantes porque passamos férias aqui. Porque a evasão para estes lugares vicentinos une todos os que, mesmo que só por uma noite, dormem ao relento nas praias desertas, sob uma abóboda que em Lisboa deixou de existir.
O cheiro das sardinhas relembra-me que a internet paga-se caro aqui. Destes pequenos cheiros, destas coisas à partida miseráveis que me acordam para estes pequenos momentos espirituais da terra e do mar, vou ter sempre saudade. G.F.

terça-feira, agosto 03, 2004

agosto

Venho para tornar a partir. Num dia de chuva e calor, de papeladas, fotografias "tipo passaporte", correspondência de Itália, dúvidas em relação ao futuro. Sobretudo muita vontade de ir e de encontrar outras respostas, outras verdades. A de sempre será a do regresso aqui. À escrita, aos devaneios, às palavras partilhadas. E depois a certeza que não voltarei fisicamente a estes quartos no final do Verão. Vou partindo, saboreando os últimos dias de solarenga portugalidade. Até regressar fica « proibida toda e qualquer entrada a quem não andar espantado de existir», admitindo-se apenas basbaques. Os de triste figura também. G.F.

domingo, julho 18, 2004

desgovernos

Não poderia ter havido melhor altura que esta para entrar de férias e depois, em Outubro, ir viver para outro país.
 
Depois do Euro voltamos ao mesmo lugar luso comum, aos incêndios nas matas e nas densas florestas da política. Ao bacoquismo de todos os poderes. À tanga já despida de metáfora.
Este país que vai entrar em Outubro depois de grandes banhadas é um país onde a política tem menages com as revistas cor-de-rosa e o futebol. Onde nem a esquerda escapa à pressão da dita estabilidade económica. Onde os únicos que acabam por se manifestar contra o estado a que isto chegou ou se manifestam só por manifestar, ou são anarquizados em argumentos ou estão simplesmente sobre o efeito de psicotrópicos. Àqueles cujos olhos não brilham ou não se lhes arreganham os lábios face às objectivas não interessa estar no poder. O trabalho sério e a crítica construída faz-se de gente anónima cuja sede não é a de poleiros, mas a de ter um país evoluído, onde na mesma frase não apareça o seu nome, "cauda" e "Europa".
 
Acho que todos temos a culpa. Aprendemos desde novos a gozar com quem nos governa e ao mesmo tempo a desresponsabilizarmo-nos pelo futuro da sociedade. E a verdade é que este governo da brilhantina está lá porque a maioria queria uma mudança do legado socialista para algo melhor. Este povo não queria Portas e teve-o algum tempo depois de ter votado e percebido mais uma vez o quanto valia uma promessa eleitoral. Este povo quis,  à falta de melhor, um medíocre Durão. Acho que não queria um ex-paineleiro futebolístico, ex-marido de uma jet-set, ex-presidente do Sporting, ex-candidato a não candidato à Presidência da República, ex-primeiro ministro fictício em programas da sic, ex-contra-atacante de Portas. 
 
Sampaio se calhar foi sensato. Talvez cada povo tenha o governante que merece.   Mas acho que alguns portugueses mereciam outro tipo de gente a cuidar dos nossos serviços de saúde, educação, das reformas, dos impostos. Gente que não aparecesse nos estádios a dar entrevistas depois dos jogos,  gente que não contestasse decisões de tribunais por estarem envolvidos amigos,  gente que não andasse a comprar vitórias em lotas, gente que não quisesse encher isto de acampamentos pela paz canábica, gente sem dogmas escamoteadores da verdade dos factos da história.  Penso que este país precisa de Políticas, não precisa de pOLÍTICOS. 
 
Este país talvez precise mas é que eu vá para esse país liderado por Berlusconi para perceber que afinal ser-se latino é igual em todo lado: é a arte de bem viver em contrato vitalício com o desenrascanço quotidiano. G.F.
  
 

um gémeo mau

Fora os que invento, tratam-me por muitos nomes. Alcunhas ou apelidos. Nos escuteiros chamam-me Gémeo por causa de um mal entendido. A verdade é que agora há muita gente que só me conhece ou trata por "Gémeo". E é também verdade que gostava de ter mesmo um irmão gémeo. Monozigótico.  Um gajo igualzinho a mim mas em simétrico. Com as qualidades e os defeitos que não tenho. Que tomasse algumas atitudes que às vezes não consigo ter. Gostava de ter um irmão completamente odioso e odiante. Alguém a quem nunca tratassem por esse amaricado sufixo de inho “Gonçalinho”, “fofinho”, “bonzinho”. Que olhassem para ele como um ganancioso mafioso maquiavélico destroçador de corações femininos em vez de o verem como uma espécie de missionário da boa vontade, paz de alma, cultivador da paz entre os povos. Era só fazer tudo o que não faço e depois bastar-me-ia dizer que era ele e seria ilibado. Sim, gostava de ter um irmão gémeo maléfico. Porque ser-se bom é terrivelmente entediante e os maus só não se safam quando ainda são crianças. G.F.
 
I Wish I Had An Evil Twin
 
I wish I had an evil twin,
Running 'round doing people in.
I wish I had a very bad
And evil twin to do my will.
To cull and conquer, cut and kill.
Just like I would if I weren't good
And if I knew where to begin

Down and down he goes.
How low, no one would know.
Sometimes the good life wears thin,
I wish i had an evil twin

My evil twin would lie and steal,
And he would stink of sex appeal.
All men would writhe beneath his scythe.
He'd send the pretty ones to me.

And they would think that I was he.
I'd hurt them and I'd go scott free.
I'd get no blame and feel no shame.
'Cos evil's not my cup of tea.

Down and down he goes,
How low I would not need to know.
All my life there should have been
An evil twin.

Magnetic Fields, 2004


 

Ultimacto

          
A primeira e provavelmente única e última peça de Teatro em que participo estreou na quarta-feira, dia 14 de Julho, pelas 21h30. Foi o culminar de 3 anos de tentativas para iniciar um projecto de Teatro amador, académico, com estudantes da minha faculdade. Com pessoas que partilhassem o mesmo amor pelo Teatro, essa urgência em pisar a madeira sob as ribaltas e tentar que alguém seja tocado. Pelo esboço de um sorriso, por uma ponte com algum momento seu. 
  
Não querendo (mas fazendo) uma retrospectiva, relembro-me agora de quando não tinha literalmente nada. Nem actores, nem textos, nem dinheiro, nem encenadora. Só vontade. Um ano que éramos 6 e desistiram 5, outro ano em que nos tornámos mais e vivendo de improvisos. A experiência pessoal na tentativa de produção da peça com a ajuda do encenador americano Harvey Grossmann O falhar de todo esse projecto. Os improvisos e os imprevistos. A incerteza em continuar o projecto. 

Então, num anfiteatro perto de nós, o meu amigo Francisco ousou dizer aos caloiros, no início deste ano lectivo, que o grupo de Teatro estava já estabelecido e «corria lindamente», as inscrições eram feitas comigo. As gargalhadas desencadeadas depois de olharem para mim demonstram um pouco a deriva em que se encontrava este projecto. Mas isso renovou forças para começar novamente, pelo menos as de colar um papel ordinário na porta do bar. Apareceram muitos e desapareceram muitos. Tal como em qualquer grupo, a força faz-se de quem continua e no dia 14, em palco, ali estávamos os últimos 8 sobreviventes. 8 colegas e a encenadora, a Ana. Ela foi essencial para a formação do grupo, para a motivação, para a organização. Foi a chave que permitiu abrir as portas do nosso desejo de representar. Tudo o que mais posso dizer em relação a ela resume-se a uma palavra simples: gratidão. 

Com a Ana Lacerda, fomos descobrindo as nossas limitações, os nossos talentos que julgávamos não existir. Com ela aprendi que ser-se actor é muito mais difícil do que mesmo os que vão frequentemente ao teatro pensam. Descobri que, felizmente ou infelizmente, não é isto que quero fazer da vida. Que é preciso ter um talento, uma sensibilidade e uma entrega que ainda não tenho, que não existe, como eu gostaria, em mim. Que as pausas, os silêncios, o ritmo, as colocações de voz e de corpo, as intenções, o conflito, os olhares têm de ser trabalhados, esculpidos. Que a arte teatral não é estática e se molda a cada espectáculo, a cada público, a cada vivência. Que é imensamente difícil darmo-nos aos outros sendo outro e fazendo com que ninguém descubra que estamos a ser nós fazendo desse outro.  

Aprendi a dar muito mais valor a quem faz Teatro, a amar ainda mais grandes papéis em palco ou nos cinemas. Percebi que os grandes actores, as grandes actrizes, são gente inumana. Descobrir isto é como se tivesse descoberto Deus ao mesmo tempo que encontrava a minha mortalidade igual à de tantos outros. Se já amava o Teatro agora talvez sinta uma qualquer outra expressão que conceptualize algo maior que esse verbo. 

É mesmo muito bonito saber que numa altura da nossa juventude um cartaz feito por nós, com as nossas pernas, os nossos nomes, a nossa peça, inundam as esquinas da cidade do Tejo, as paredes dos bares do Bairro Alto, as portas dos edifícios públicos e provavelmente algum muro arruinado entre anúncios de aparelhos de rádio e de detergente. È bonito chegarmos aqui sem medo de sermos uma grande merda, de temos arriscado e exposto porque foi o sonho que sempre quisemos tocar. 

Agora que estou prestes a partir ai num aeroporto que sempre foi o lar da minha esperança de fuga, continuo a acreditar nos homens e nas mulheres que vão colando os seus cartazes e reinventando-se com essa urgência que existe num país cada vez mais estagnado, com barricadas burocráticas, políticas, educacionais, onde pode ser instável e muito caro exercer-se democracia. Continuarei a ouvir essas gentes que no meio dos “normaiszinhos” se vão amando e nos amando. G.F.
 
P.S. Aproveitando a publicidade deste blogue e como não sei publicar imagens que não estejam já em algum site, deixo aqui:
 
«Com carácter de urgência»
 
Direcção de Ana Lacerda
Assistência de Joana Moleiro
Produção, Gonçalo Fontes
Textos de Daniel Filipe, Tiago Lila e Rosa Esteves
Músicas de amor em cds pirata
 
Com Carolina Abreu, Estela Ricardo, Gonçalo Fontes, Rita Rodrigues, Rosa Esteves, Rui Santos, Sofia Mendes e Tiago Lila

 
AINDA DIAS 21, 22 E 23 DE JULHO – 21H30 – ENTRADA LIVRE – AUDITÓRIO DA CANTINA VELHA – CIDADE UNIVERSITÁRIA – RESERVAS 916163069



quinta-feira, julho 08, 2004

Aniversário

Este blog fez, no passado dia 2 de Julho, um ano de existência. Só me lembrei hoje quando o stress de ter de estudar me fez relembrar que há um ano atrás estava exactamente na mesma situação. Há fases que realmente são sempre iguais, basta ler alguns dos posts primogénitos para perceber essa realidade. E o mesmo estudo que se adia. Triste sina a de um estudante e pior a de quem tem blogs.G.F.

quarta-feira, julho 07, 2004

Vivendo o Euro2004 VI - A minha derrota

Não percebo quem não entende a importância histórica, afectiva, social, psicológica, económica, que este campeonato da Europa teve para o nosso país. Mais que o nosso país, o Euro conseguiu unir a nossa maior pátria, a da Língua Portuguesa. Não percebo quem não entende o fenómeno desportivo como o único factor capaz de promover a paz entre os povos, como disse Mandela. Quando gosto de falar do futebol, não falo dos senhores das secretárias mas dos magos da bola que, heróis, fazem do seu talento a arte nos relvados da ribalta. Não falo da máquina publicitária mas de quem se senta à frente da tv, de cachecol ao peito, numa rua em construção em Dili ou num café apinhado em Benguela, chorando a cada vitória. Falo das cuecas, das cabritas, dos postes feitos de “monte campos”, do «querem fazer jogo?», das equipas de fora, dos apurados, da rabia, do «muda aos 5 acaba aos 10», do par ou impar para fazer equipas.

Não percebo quem não se emociona ao ver uma finta do Cristiano Ronaldo, ao ver uma defesa sem luvas do Ricardo. Não percebo quem ache que discutir bola é uma futilidade, que não há nada de sublime em ver “22 homens a correr atrás de uma bola”.Não percebo quem ache que emocionar-se por um jogo é coisa de gente pequena. Também não é para esses “grandes” que mostro os momentos em que me embasbaco com o mundo.
Este Euro, o melhor de sempre, deu-me a oportunidade única de viver na prática que é possível existir amor entre as vários tribos humanas. Hoje que abano a cabeça e mordo de raiva os lábios ao ver as imagens da festa que se fez na Grécia, sei que acordei de um sonho. Mas mesmo esse acordar foi de festa, não foi um acordar para um regresso ao negro fado brutal. A derrota de domingo foi triste mas o que aconteceu antes e depois quase que consegue dissipar a frustração de neste momento saber a cruel verdade: não somos campeões.

O domingo da nossa e da minha derrota, um domingo que podia ter sido o da explosão nacional, começou com as pinturas de guerra, o vestir das fardas oficiais para a última batalha. Multidão de gente confiante, colorida, cantando, despida, envergando pátrias de sorrisos. Um jogo que começou a revelar-se sufocante. Um golo que não se viu quando se pedia uma imperial. Um golo que foi o primeiro beliscar. A dor de cabeça por puxar pela equipa até ao fim. E o apito final. Um apito silencioso. Um país resignado. Desiludido. Fui à janela do bar e olhei para a multidão que olhava os vários ecrãs gigantes. Lembrei-me do meu pai que chorou quando o Benfica perdeu a final para o P.S.V. Lembrei-me do meu pai que me acordou numa madrugada para ir ver o Carlos Lopes ou a Rosa Mota ganhar a maratona. Lembrei-me dos milhares de portugueses que neste momento estão a viver uma vida sócio-económica de merda e tanta vontade de mudar e de ganhar projectaram nesta selecção. Lembrei-me do inglês que se abraçou a mim a chorar no final dos quartos de final. Lembrei-me dos meus putos lobitos para quem ainda perder não é muito significativo mas custa. Lembrei-me daqueles dias de Setembro de 99 em que andei nas manifestações pela libertação de Timor, em que de tão longe nos tinham tanta gratidão e carinho, em que dias antes desta final nos comoveram ao beijarem as nossas bandeiras do outro lado do planeta. Lembrei-me que a vida não é o argumento que escrevemos, que os bolos quase nunca têm cerejas. Que também acordamos. Depois chorei.

Mas desta vez tivemos orgulho, saímos para a rua novamente de vermelho e verde. Antes de chegar ao Marquês entristeci-me com a nossa cidade, o nosso mundo que tinha planeado tanto a festa e que agora estava ali na rua gritando pelo país. Num sinal vermelho apaixonei-me por umas raparigas que pararam o carro ao pé do nosso apitaram. Quando virei a cara para ver quem era, disseram para não ficar triste, que não valia a pena, que devia estar feliz e orgulhoso porque tinha uma cara bonita e porque era português. Sincero ou não, nunca um elogio de um estranho me soubera tão bem. Agradeci e sorri. Perguntaram-me o nome, arrancaram e nunca mais as vi. Ainda por cima eram bonitas.
No Marquês, a festa com os estranhos que iam aparecendo e falando connosco. A bandeira gigante comovente que alguém ergueu. Depois, na Avenida da Liberdade, os gregos que nos iam abraçando e agradecendo pelo país, pela hospitalidade, respondendo com “bravô” quando lhes gritávamos “sihcaritiria”. Tempo para avisar um grego que havia sítios mais baratos que a “Brasileira” e que o nosso Fernando Pessoa foi mais genial que o seu Homero. Então, um Bairro Alto de gentes boémias, cantando Portugal. Brasileiros levantando o nosso astral fazendo rimas, uma guitarra já rouca a cantar Zeca Afonso, canadianos de descendência indiana, que nunca tinham estado num país de “arquitectura, de comida e de gentes tão fascinante”. Mais tarde acabar a noite sentado no chão a beber e a falar de tudo e de nada. Rindo nas ruas, com amigos. Até que um grupo de Japoneses (um com uma camisola do Benfica!!!) chega e lhes começo a gritar pelo Tsubasa. Vêm a correr para mim e começamos a cantar a música desses míticos desenhos animados que demoravam 10 episódios para se marcar um golo. Tempo para discutir o papel do Hentai e da ejaculação facial inventada em terras nipónicas, para agradecer pela invenção do Nintendo (a minha maior alegria quando passei para o quinto ano). E depois um momento que nunca esquecerei, o de quando mencionei o Sangoku e quando tive a oportunidade única de fazer a “Fuuuu zããããoo” com um deles, que fingia transformar-se em Super Guerreiro. Abraçaram-se a mim dizendo que eu era um “ámigo, ámigo” e despedimo-nos gritando por esse astro mundial, Tsubasa, também conhecido por Oliver Benji.

A noite acabou e se tivéssemos um Tsubasa na nossa selecção nem tinha acabado. Bem vendo as coisas o Euro foi como esses desenhos animados: jogos de qualificação em que guarda-redes tiram as luvas para defender penalties decisivos, pontapés canhão de fora de área transformados em golos de jogadores suplentes, treinadores generais paternais incentivadores da audácia e da vontade de ganhar, público que até anda de bote e de corsel para acompanhar a sua equipa. Perder no final contra os maus que não jogam nada e fazem anti jogo e marcam um golo contra a corrente do jogo. O que vale é que há sempre mais episódios. O próximo chama-se Atenas.

Agora que os jornais de ontem são o lixo de hoje, em que o país está atirado aos lobisomens de bons modos urgentes em caçar o poder, em que se limpam as praças, se desmontam as festividades, se apanham as canas, posso dizer, ainda com alguma incredulidade, que a taça não é mesmo nossa. Porém, o mundo é. G.F.

Embriagai-vos

Numa dessas ruas do Bairro a que vamos dar sem saber como, um cartaz que simplesmente dizia o seguinte:

«Embriagai-vos. Deve-se estar sempre embriagado. Nada mais conta. Para não sentir o horrível fardo do tempo que vos esmaga os vossos ombros e os faz prender para terra, deveis embriagar-vos sem tréguas. Mas de quê? De vinho, de poesia, de virtude, (“ou de futebol”, escrito a marcador), à vossa escolha. Mas embriagai-vos.» Charles Boudelaire

quinta-feira, julho 01, 2004

Vivendo o Euro2004 V - a 90 minutos da glória.

Esta noite não há palavras, as imagens do povo feliz nas ruas descreve tudo o que sinto, o que sentimos. Estamos na final. Estamos nas bocas do mundo. Hoje renascemos. Venha o esplendor da final. Sempre te Amei Portugal. G.F.






PARA NÓS...

domingo, junho 27, 2004

Vivendo o Euro2004 IV - a minha avó e o Euro

Não falava com a minha avó há muito tempo. Hoje ao telefone falou-me da felicidade que teve, mesmo sozinha, na quinta-feira à noite depois do jogo. A minha avó mora a alguns quilómetros do santuário de Fátima. Disse-me que nunca lá tinha visto assim uma manifestação pagã e espontânea tão grande. Disse-me também um pormenor delicioso: «Ao longo da minha vida, já tinha ouvido falar muito dessa coisa dos penalties. Com esta minha idade só na quinta-feira é que descobri o que eram». G.F.

okupas de palmo e meio

No intervalo do estudo, decidi ir à janela ver quem alegremente fazia barulho lá fora. Devo ter sido, juntamente com o meu vizinho de baixo, das últimas pessoas que brincou ou jogou à bola aqui ao redor do prédio. Há uns 7 anos que não se ouve nem se vê vivalma por estas bandas nas tardes solarengas de Domingo. Hoje, quando abri a janela, olhei para o pequeno relvado e tive uma agradável surpresa, vi uns 5 putos a tentar subir uma árvore. Quando ainda estava a percorrer com o olhar a sua torre de castelo por conquistar, eis que surge, à altura da minha janela quase sobre o meu parapeito, a cara de um miúdo, enganchado no meio dos ramos. Disse-me:
- Olá.
- Olá, então o que estão a fazer?
- Olha a subirmos às árvores, vamos construir uma casa.
- Está bem, mas quando fizeram as janelas, não as virem para aqui, senão descobrem que passo as tardes de domingo a ver televisão em vez de fazer os trabalhos de casa.
- Está bem, nós não fazemos. Mas ao domingo não dá nada de jeito, é mais fixe subir às árvores.

Ri-me, fechei a janela, fui tentar estudar. Antes tivesse uma árvore à minha espera que as malditas fotocópias. G.F.

sexta-feira, junho 25, 2004

Vivendo o Euro2004 III - Cumpriu-se Portugal.

Se tanto me ajudar o engenho e arte que eu consiga chegar ao fim deste relato hoje. Escrevo ainda com lágrimas por enxugar depois de uma noite realmente “fantomatica” como diria um amigo meu italiano que não teve a mesma sorte ou Caravagio que nós. Uma noite que pareceu não ter acontecido. Fantástica, sublime, maravilhosa, inesquecível. Uma noite de paixão patriótica e de união nacional. Uma noite que da lei da morte se libertará. Histórica, de vitória. De sofrimento. Apaixonante. Qualquer um de nós já grisalho se lembrará onde estava naquela noite em que sem luvas Ricardo nos ofereceu a esperança e com os pés nos devolveu a glória. Enalteçamos agora o querer português e a confiança humilde com que partimos para esta batalha que se revelou dramática, sufocante, taquicardíaca.

Ontem fomos um por todos e todos contra a Inglaterra. Nesta pátria biológica ou adoptada, paquistaneses, alentejanos, ucranianos, minhotos, chineses, trasmontanos, angolanos, tripeiros, timorenses, beirões, brasileiros, ribatejanos, cabo-verdianos, alfacinhas, moçambicanos, algarvios, guineenses, ciganos, são-tomenses, checos, croatas, letões, búlgaros, gregos, holandeses, suíços, espanhóis, italianos, franceses, dinamarqueses, suecos, alemães, russos, todos gritámos no fim: Portugal, Portugal. E ao mesmo tempo que nas “Downing Streets” desse mundo se reiniciavam as discussões acerca de invasões estratégicas e aquartelamentos, minutos depois de rebentar a maior alegria colectiva a que já provavelmente assistimos, um inglês agarrava na minha bandeira, colocava-a aos ombros e a chorar gritava “Por tcho gal”. Pouco depois dizia-me abraçado a mim que nunca tinha aqui estado e que amava este país. E o amor que se espalhou pelos bares, pelas estradas, por todos esses trilhos resplandecentes de portugalidade, pelas ruas e janelas lusas das gentes de todas as idades, gentes da minha e da nossa terra, a gritar, a chorar, a cantar, a saltar, com uma alegria pura, fizeram da noite de ontem uma noite de liberdade. Sem frustrações, sem complexos de inferioridade, cientes das nossas capacidades, como um só Povo. Um pais que se vai esquecendo que é lindo, que é feito de gente de sorrisos fascinantes.

Ontem, acabei a noite como tantos outros. Sentei-me em cima do tejadilho de um “Fiat Tipo” frenético pela marginal, erguendo ao vento a bandeira, tendo à esquerda o Tejo, à direita Alfama, ao fundo o Mar e o Cristo Rei. Entre gentes de todos os catálogos, simples e refinados portugueses. Ora gritando pelo meu país, ora saboreando a brisa fria mas tão quente que me deixava os olhos cada vez mais em lágrimas. Ontem senti que podíamos ser mesmo nobres. Ontem senti-me valente. Ontem senti a voz mátria sussurrar-me ao ouvido. Ontem fui eu que defendi aquele penalty. Ontem fomos nós que o marcámos. Ontem fomos Heróis. Ontem cumpriu-se Portugal. G.F.




Quando
tu me vires no futebol
estarei no campo
cabeça ao sol
a avançar pé ante pé
para uma bola que está
à espera dum pontapé
à espera dum penalty
que eu vou transformar para ti
eu vou
atirar para ganhar
vou rematar
e o golo que eu fizer
ficará sempre na rede
a libertar-nos da sede
não me olhes só da bancada lateral
desce-me essa escada e vem deitar-te na grama
vem falar comigo como gente que se ama
e até não se poder mais
vamos jogar
S.Godinho

segunda-feira, junho 21, 2004

Vivendo o Euro2004 II - O povo saiu à rua com a alegria que costumava ter





Os velhos do restelo, os intelectuais desapaixonados, os jornalistas fuínhas, que aproveitem a boleia de nuestros hermanos. Portugal precisa de quem acredite que somos capazes, que quando queremos somos melhores. Acreditámos no mito e foi D.Nuno, o Mestre que deu o verde à alma lusa, o vermelho ao sangue que nas artérias correu veloz num jogo de sofrimento, até ao minuto final da consagração. Nós acreditámos e nós vencemos. O Euro já está ganho há muito, mas ontem a vitória teve um sabor especial. Nas ruas,nas bandeiras, nos cânticos do povo luso aos milhões e do povo inglês, grego, russo, croata, alemão. «España intera esta de borrachera» gritavam os espanhóis. Nas avenidas, nas ruas, nas pracetas, nos bares, de bmw ou de fammel. A festa é nossa. Tinhamos o Euro, agora temos uma equipa. 10 milhões de convocados para consagrar a festa do desporto, se possível, com outras centenas de outros países. Sem fronteiras. Porque um abraço a um estranho não tem preço. Porque o povo pode não ter mais oportunidades de sair à rua com a alegria que teve ontem. G.F.

domingo, junho 20, 2004

coração vagabundo

Sem palavras para escrever, sem vontades para estudar. Não atinjo aquele ponto em que ainda não sinto necessidade de estudar, uma espécie de ponto de embraiagem em que o pedal da esquerda é o começar concentrado e o da direita a pressão de véspera. Ora me perco nos afazeres inúteis inimagináveis ora me encontro a olhar para parágrafos repetidos de desmotivação. Amanhã é mais um domingo em que se tentará a glória. Era bonito ganhar. Era bonito ganharmos.

Era também bonito que eu me agarrasse às já muito pouco quentes fotocópias e não confiasse mais uma vez na extrema sorte que tenho tido ao longo destes anos. Não acredito que precise mesmo de uma derrota para perceber que é preciso lutar para ter glória. Luta-se de alma aberta, acredita-se no triunfo quando definimos o que ele é. Eu ainda não descobri o que significa na minha vida futura o triunfo. Como podemos embarcar numa demanda por algo tão indefinido concreta e abstractamente?

De qualquer maneira, seja qual for o fim, a busca tem de ser feita a dois. Uma viagem sem ter um relato, sem alguém que nos ouça e se delicie com as nossas estórias, a nossa felicidade, é uma viagem híbrida. Sinto que chegar ao final do dia feliz sem ter ninguém para o dizer é chegar ao principio da noite triste. Os futuros pintam-se a dois. A duas cores, como aquelas alturas em criança, quando pegávamos com a mesma mão em dois lápis de cores diferentes e riscávamos duas linhas eternamente paralelas, rodopiando ao sabor do papel, sem arriscar finais.

Pois eu que agora aqui me sento, sei que tenho que ir estudar. Mas mesmo que estude, mesmo que passe, mesmo que tenha 18, não acrescento nenhum lugar ao meu itinerário. Não adiciono barreiras transpostas na minha caminhada. Quando se deriva, regressa-se sempre e ao mesmo tempo não se regressa nunca. Ainda vou a tempo de, neste momento, ser tudo. Mas ás vezes é preciso ser-se tudo para alguém, para não se ser ninguém.

...

Paro. Releio o que escrevi e não sei se fará algum sentido. Aliás já nem sei do que queria falar hoje. Talvez de mulheres, como faço em quase todos os textos. Paro novamente, oiço um novo álbum, Bebo Valdez e Dieguito El Cigala. De Espanha chega-me este lindo vento e um fantástico casamento entre saxofones, piano, violino e o gitano Flamenco. Apaixono-me pelo que oiço. Tento recomeçar a escrever e redescubro que a escrita é um vício como todos os outros que servem para nos apaziguar a mente quando «temos um dever e não o queremos fazer». Um vício perigoso em que a viagem que fazemos não nos impulsiona para o universo social imenso, lá fora. Faz-nos sim mergulhar dentro de nós. E tal como acontece com qualquer outro vício vou tentar agora extingui-lo, não sem antes interiorizar que é algo benéfico, que me dá prazer. Como qualquer outro vício.

Cinjo o meu prazer ao que agora oiço, à canção número 10 “Eu sei que vou te amar”, cantada com sotaque espanhol. Por momentos sou luso-espanhol. Por momentos fico em dúvida se não ficarei triste se a Espanha perder amanhã.

Não vou ficar. Caetano Veloso surge a meio da canção. Apenas falando. Poesia. Na nossa Língua Portuguesa. E tudo faz sentido:

«Meu coração não se cansa de ter esperança de um dia ser tudo o
que quer. Meu coração de criança não és só a lembrança de um
vulto feliz de mulher que passou por meu sonho sem dizer adeus e
fez dos olhos meus um chorar mais sem fim. Meu coração vagabundo
quer guardar o mundo em mim.»

Doce e tocante.
Portugal amanhã vai ganhar, fui eu e seremos nós que continuaremos a descobrir e a guardar este mundo. G.F.

sexta-feira, junho 18, 2004

Forest Gump

Quando decidi escrever um blog sobre basbaques, momentos ou gentes, a segunda pessoa em quem pensei foi em Forest Gump. A minha personagem de cinema preferida. Havendo um mundo de inteiro de gente a embasbacar-se, ele seria o líder. Linda é a cena em que diz: «Eu não sou um homem inteligente mas sei o que é o amor.» Forest Gump

quinta-feira, junho 17, 2004

Porque 19 de Junho faz 60 anos, Chico Buarque.

João e Maria

Agora eu era o herói
E o meu cavalo só falava inglês
A noiva do cowboy
Era você
Além das outras três
Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões
Guardava o meu bodoque
E ensaiava um rock
Para as matinês

Agora eu era o rei
Era o bedel e era também juiz
E pela minha lei
A gente era obrigada a ser feliz
E você era a princesa
Que eu fiz coroar
E era tão linda de se admirar
Que andava nua pelo meu país


Não, não fuja não
Finja que agora eu era o seu brinquedo
Eu era o seu pião
O seu bicho preferido
Sim, me dê a mão
A gente agora já não tinha medo
No tempo da maldade
Acho que a gente nem tinha nascido


Agora era fatal
Que o faz-de-conta terminasse assim
Pra lá deste quintal
Era uma noite que não tem mais fim
Pois você sumiu no mundo
Sem me avisar
E agora eu era um louco a perguntar
O que é que a vida vai fazer de mim


Sivuca - Chico Buarque/1977

velho

Descobri que estou mesmo velho.
Ontem dei por mim a pensar que o Cristiano Ronaldo era um puto bom de bola. Quando aprendia a ler a escrever olhava para alguém com 17 anos e era bem capaz de tratar por "sinhor".
Hoje imaginei-me a passar um fim de semana na terra do meu pai, perto da Guarda. Entre o frio pacífico e granítico do cenário e as personagens calorosas e simples. Quando aprendia a ser adolescente olhava para um fim de semana da terra como um martírio familiar, passado a ver televisão e a cumprimentar rotineiramente toda a família desconhecida que tenho.
Já temos passado, somos velhos. G.F.

domingo, junho 13, 2004

Eleições europeias

Vou agora votar. Tenho vergonha de saber que há gente que não o fez porque simplesmente não lhe apeteceu. Quem se demite deste dever não tem o direito de criticar qualquer governação. Shame on you Mr. Tuga. G.F.

Vivendo o Euro2004 - I

Reduzimos os gregos a ruínas? Não. Felizmente também não fiquei em ruínas. Talvez por ter percebido com os últimos anos de benfiquismo, que não se pode ganhar sempre. Que investir emoções em 90 minutos com grandes hipóteses de os lucros serem frustrações, é estúpido. Mas ainda é bom ser estúpido e fazer desta selecção alavanca do neo-esplendor luso. Somos muitos os que só nos lembramos que temos bandeira e um hino, quando o árbitro apita para mais um jogo. Os políticos de bancada, da lota e das tendas v.i.p. agradecem. E mais agradecidos ficam os publicitários que tão bem jogam com esta falsa crença que somos um país de pouca auto-estima.

Como disse, não reduzimos arrogantemente os gregos a ruínas. Fomos fracos. Mas a força do Euro2004 é feita da união da Europa à volta do desporto rei. O Euro não é a selecção portuguesa. É ter a oportunidade de, em plena noite de Santo António, gritar Tomo Sokota com um grupo de croatas, ter o privilégio de admirar os seios generosos das gregas, ensinar uns ingleses “o glorioso S.L.B.” em troca de cervejas, ouvir uns suecos gritar «Portugal allez», dar os parabéns a uma colega de Erasmus espanhola e ela ter respondido que trocava a vitória da Espanha por uma de Portugal.

A oportunidade de ter a Europa aqui em casa isso sim é motivo de orgulho. Não uma bandeira que em Agosto já estará arrumada.

Ontem vimos a bola, marchámos, recebemos visitantes, comemos sardinhas e dançámos música popular. Fomos, como no resto dos dias, tipicamente portugueses. Bons, ao contrário de quem nos organiza. Penso que o problema reside um pouco numa frase da peça de teatro que fui ver sexta-feira: «Lá fora existe um génio para cada mil medíocres. Aqui temos mais de mil medíocres que pensam que são génios». Os que nem são medíocres nem génios façam a festa pura. As ruas e este sol abençoado são nossos. E este campeonato já está ganho. G.F.

sábado, junho 12, 2004

2 avisos

Chama-se a atenção dos amigos que aqui vão ficando para dois factos. Um, o de imperativamente terem de ir conhecer o »Bicho da Escrita», o blog muito bom da Ana. O outro: que esta espelunca mudou de caixa de correio. Agora é basbaque@portugalmail.pt . Simples para vocês, fácil para mim de aceder ao servidor. Muito obrigado, boas leituras.G.F.

quinta-feira, junho 10, 2004

gostava

Ouvi ainda agora alguém dizer que se vivesse até aos 80 anos continuando a perder o tempo que demora a vestir-se e a aperaltar-se no final teria estado 3 anos inteiros a faze-lo. Eu gostava de ter alguém que ganhasse pelo menos 5 anos a despir-se só para mim. G.F.

terça-feira, junho 08, 2004

Povoamento

Monte Abraão: um povoamento de nome bíblico com duas estações de comboio da Linha de Sintra; uma companhia de Teatro, a Teatrosfera,uma equipa com atletas de renome europeu, a Juventude Operária do Monte Abraão; o Agrupamento 900 de Escuteiros que se destaca em todo o Núcleo Serra da Lua e a nível do C.N.E., um dólmen milenar atrás do meu prédio, prova da ancestral habitação deste, outrora, lugarejo.

Não é isto nem a vista que eu tenho da minha sala para o Mar e para o Cabo Espichel que me faz ter um imenso orgulho de viver há 22 anos aqui. É viver na mesma terra onde viveu um Poeta que deu nome à Escola Preparatória onde aprendi a crescer durante 5 anos. È saber que por aqui passou um Homem que escreveu, entre muitos outros, um dos mais belos poemas de amor que conheço. Hoje cito Ruy Belo porque amo este Monte.G.F.

Povoamento

No teu amor por mim há uma rua que começa
Nem árvores nem casas existiam
antes que tu tivesses palavras
e todo eu fosse um coração para elas
Invento-te e o céu azula-se sobre esta
triste condição de ter de receber
dos choupos onde cantam
os impossíveis pássaros
a nova primavera
Tocam sinos e levantam voo
todos os cuidados
Ó meu amor nem minha mãe
tinha assim um regaço
como este dia tem
E eu chego e sento-me ao lado
da primavera


Ruy Belo
Aquele Grande Rio Eufrates
Editorial Presença
1996
5ª edição

às vezes

A diferença entre a quantidade de palavras que se apagam antes de serem publicadas e as que se desvanecem em redemoinhos dançando pelos labirintos das noites sem sono é incrivelmente significativa.

Às vezes escreve-se por tudo, outras escreve-se por nada.

Às vezes temos tudo para contar. Outras vezes as nossas pequenas estórias resumem-se à nossa embrionária e desinteressante história.

Às vezes urge escrever, acalmar a tesão neuronal, explodir em bebedeiras de fábulas, de contos, de discrições calorosas dos santuários momentos que nos tenham tocado. Outras em que não nos toca nada e tudo é gélido, imaculado, desapaixonado e desapaixonante.

Às vezes a pele toca-nos na alma outras vezes somos apenas restos de boas lembranças e moderadas esperanças.

Às vezes descobrimos a vida nas águas revoltas dos nossos dias tão sempre diferentes. Outras em que descobrimos estagnação nos pântanos do nossos dias tão sempre iguais.

Às vezes em equilíbrio, outras procurando-o, vamos tentando perceber. Em todas as vezes, antes de concluirmos, adormecemos. G.F.
Uma pequena ajuda para a Química dos pré caloiros. G.F.


vai

Já se saltou, gritou, sambou, moxou, dançou, tripou, curtiu, cantou, delirou, rockou. Agora, vêm ai grandes arraiais. Vai-se jogar à bola. Vai-se gritar golo. Vão-se abraçar estranhos. Vão-se erguer cachecóis e bandeiras, ser português. Vamo-nos cruzar nas esquinas da noite alfacinha com a Europa. Vai-se cheirar a sardinha. Vai-se marchar. Vai-se sorrir. Vai-se beber. Vai-se beber muito. Vai-se amar. Vai-se amar muito. E depois, o que é que se vai fazer? G.F.

quarta-feira, junho 02, 2004

São bisnagas?



entre tantos

Nos entre tantos de Maio: finalmente a carta de condução, festas de anos, trabalhos para a faculdade sobre psicologia positiva, e o espectacular trabalho nos palcos do Rock In Rio. Assuntos a merecer ou não, algumas considerações. Felicidades pessoais meramente.

Tudo o que eu queria dizer de bonito e importante lembrei-me nestas noites e esqueci-me segundos antes de adormecer. Fiquei com a leve sensação que eram mesmo coisas geniais, daquelas capazes de fundar novos movimentos ideológicos. Infelizmente os lençois costumam vencer as lutas contra a propagação de novos ismos. Resta-me acordar com a certeza quase absoluta que poderia ser mesmo alguém neste Mundo. Ou se quisesse ou se dormisse menos ou se não existissem por aí umas centenas de tipos bem melhores que eu.

Peço desde já a desculpa à Mulher ( à com quem eu vou adormecer nos últimos dias da minha longa vida depois de saber de cor todas os seus medos e desejos, todas as belas rugas do seu rosto), por nunca lhe poder proporcionar a oportunidade de dedicar um discurso numa cerimónia qualquer de conceituados palanques. De qualquer maneira, a vida daqueles que nunca aparecem não é má de todo, embora cheguemos a metade dos 20 ainda com a escondida ilusão que seremos popstars ou presidentes da república. (ou ambos). G.F.
Já era altura de eu começar a sentir estas músicas mais bonitas do que elas me soam. Como não se escolhe ter "novamente 17", continuarei com os meus 22. Quem está como eu oiça outras coisas, aos apaixonados:


The Closest Thing To Crazy


How can I think I'm standing strong?
Yet feel the air beneath my feet.
How can happiness feel so wrong?
How can misery feel so sweet?

How can you let me watch you sleep?
Then break my dreams the way you do.
How can I have got in so deep?
Why did i fall in love with you?

[Chorus]
This is the closest thing to crazy
I have ever been.
Feeling twenty-two, acting seventeen.
This is the nearest thing to crazy
I have ever known.
But I was never crazy on my own.
And now I know
That there's a link between the two,
Being close to craziness, and being close to you

How can you let me fall apart?
Then break my fall with lovin lies.
It's so easy to break a heart,
It's so easy to close your eyes.

How can you treat me like a child?
Yet like a child I yearn for you.
How can anyone feel so wild?
How ca anyone feel so blue?

[Chorus]
This is the closest thing to crazy
I have ever been.
Feeling twenty-two, acting seventeen.
This is the nearest thing to crazy
I have ever known.
I was never crazy on my own.
And now I know
That there's a link between the two,
Being close to craziness, and being close to you

And being close to you

And being close to you

Katie Melua, Call off the search, 2003

terça-feira, junho 01, 2004

1 de Junho de 1982

Falo e escrevo muito sobre crianças. Tenho a sorte de poder trabalhar com elas todos os fins-de-semana. Tenho a sorte de ter tido sempre uma catrefada de primos mais novos que eu que pegava ao colo, contava piadas e jogava à bola ou ajudava a montar lego e playmobil. Tenho a sorte de ter um tio 10 anos mais velho e que sempre brincou comigo proporcionando alguns dos melhores momentos da minha infância na casa da minha avó de Fátima (que já cada vez menos tenho tempo de ir revisitar).

A infância e as minhas brincadeiras não se escondem nos quintais, nas ladeiras, nos recreios, nos sótãos onde me evadia sem noções de lugares e tempos. A infância nasce-me ainda todos os dias, pintando a lápis de cera os pequenos momentos em que posso dizer que sou feliz. Feliz não, livre. Porque para mim a verdadeira Liberdade era e será e estará no acto puro de brincar. Ao faz de conta, aos jogos de bola sem vencedores, aos dedos feitos pistolas ou pistolas transformadas em dedos, às balas feitas de perdigotos, às pistas desenhadas por pés arrastados na areia, ao braço do sofá da sala que era o meu cavalo preferido, aos “desenhos zanimados” do brinca brincando, às tentativas de recordes mundiais de maiores filas de carrinhos pela casa toda, ao cabelo sempre suado e despenteado, camisas e fatos de treino de fecho desfraldados e ténis de velcro, à apanhada e às escondidas.

Nesse passado que se vai afastando ao sereno ritmo das memórias, reencontro-me criança e não é a nostalgia que descubro. Descubro as raízes de ser ainda assim, de ter a bênção de poder divertir-me como nunca, quando brinco com as crianças. De sorrir quando elas me dizem “ei amigo, vamos por ali que os ladrões já fugiram” ou quando descubro que se pode ver Sonho e Maravilha nos olhos pequeninos que brilham ao ouvir-me inventar que tenho dinossauros anões vivos no meu quarto e usam t-shirts brancas e galochas e cantam músicas dos morangos com açúcar.

Redescubro que a Terra do Nunca ainda pode ser habitável, e que embora as ampulhetas biológicas não parem, lá posso voltar, gritar dá cá mais cinco e receber os pequenos dedos que um dia, adultos, guiarão os nossos lemes. Terra de Liberdade perdida em locais ermos das nossas almas já quase completamente sentenciadas culpadas pelos nossos corpos, pelos vícios, frustrações ou luzes ao fundo dos túneis fundidas. Intervalo de tempo onde a magia realmente existe. Além de ser real é transparente, serena, directa, às vezes cruel, sempre leal. Nessa lealdade de palmo e meio que é o betão de pontes onde não são feitas cobranças.

È sem essas cobranças que vou encontrando os amigos, uns de 4 anos outros de 20. È nessas pontes que atravesso de lá para cá e de mim para eles que descubro a humanidade, a frescura de se ser ainda humano neste mundo que apelida sarcasticamente de ingénuos os que querem a paz, o acabar das armas. Os que comemoram hoje o Dia Mundial da Criança, dia 1 de Junho, o dia do meu aniversário, os putos, desarmam categoricamente os Grandes com os seus jogos, as suas corridas, os seus brinquedos. Porque ainda não têm medo do cliché, porque não sabem nem precisam de saber a maioria das palavras difíceis, porque ás vezes está-se bem melhor é a comer a partir da parte de baixo um corneto de morango ou a tirar macacos do nariz sem ninguém ver.

Em 1982 neste mesmo dia, a minha mãe e o meu pai olhavam para mim e eu dormia, tinha algumas horas de vida. È impossível descrever a hipnose das chamas de uma fogueira, tornar linguagem a água que brota de uma nascente. Ver uma criança, um bebé a dormir é uma experiência desarmante em qualquer situação mesmo marcial. Aproximação do divino, dúvida do ateísmo. Embasbacamo-nos. Olhamos directa e serenamente para o rosto de um futuro ainda adormecido.Contemplamos a esperança.
Obrigado pai e mãe pela oportunidade de ter chegado aqui tão feliz. G.F.

quinta-feira, maio 13, 2004

cinco mil

Depois de 10 meses, 10 dias, 3horas, 45 minutos, 95 posts, agradeço a todos os que contribuiram para as mais de 5000 visitas. Infelizmente não tenho forma de saber quantas almas diferentes visitaram este espaço. De todas, a que mais me comove é a visita de um brasileiro que procurava e procura um antepassado seu italiano.
Enfim, se isto chegar às 10000 será mau sinal: mais 10 meses aqui significarão horas perdidas de utilidade pública e plenitude privada.

Especialmente aos de todos os dias, Obrigado.G.F.

quarta-feira, maio 12, 2004

Eurovisão

E lá continuamos a cantar em português nestes certames. Nos tempos em que o país parava para ver o Festival havia o José Cid. Esse sim conseguiu levar-nos ao 3º lugar na Europa. Ele sim é o maior, porque inventou o Rock Progressivo, tem mais de 500 mil sites na net, devia ter aberto a primeira parte dos Rolling Stones, consegue cantar com um olho fechado e outro de vidro e encheu meu coração num dos concertos da minha vida, no Coliseu, o mês passado. Mas este ano estamos perto da espectacularidade e do sex appeal dos outros concorrentes; talvez uma boa classificação. Espero que alguém me avise quando começar a pontuação que é o que gosto mais de ver. Um ponto para Portugal sabe quase tão bem como um golo do Figo.

Mas quem merece a pena que seja referido é esse arauto, esse Gabriel Alves do entretenimento eurovisivo. O Eládio. Ouvir o Eládio Clímaco é receber um bilhete nostálgico. È vislumbrar os nossos Portugueses de maillot verde alface a escorregar de patins para dentro de piscinas. È ter o zunido do “ Atencion, prés, piiiiiiiiiii”. É descobrir que no Chipre há monumentos de uma beleza impar e que o Cartaxo tem um bom vinho. È trautear esse genérico mágico e emocionante “Ta ra ra ran, Ta ra ra ran, Ta ra ra ran, Ta ra ra ran; Ta, Ta ; Ta ra ra ra ran Ta ; Ta ra ra ra ran Ta ; Ta ra ra. Esses tempos em que os jogos ainda não tinham fronteiras. G.F.

P.S. Acabo de escrever este post e descubro que Portugal acaba de ficar com zero pontos. Afinal nem tudo muda.

Times they are a changing

Se me perguntarem do que é que sou, só tenho duas respostas, do Movimento Escutista e do Benfica.
Não conheço Deus. Pratico o cristianismo mas não acredito em ressurreições. Não acredito em Fados embora viva de Saudade. Sou do Mundo, embora felizmente Português. Se me perguntarem se sou de Esquerda ou de Direita não sei responder linearmente. Acredito que os tempos mudam, pertenço talvez às letras de Bob Dylan. G.F.


Times they are a changing

Come gather 'round people
Wherever you roam
And admit that the waters
Around you have grown
And accept it that soon
You'll be drenched to the bone.
If your time to you
Is worth savin'
Then you better start swimmin'
Or you'll sink like a stone
For the times they are a-changin'.

Come writers and critics
Who prophesize with your pen
And keep your eyes wide
The chance won't come again
And don't speak too soon
For the wheel's still in spin
And there's no tellin' who
That it's namin'.
For the loser now
Will be later to win
For the times they are a-changin'.

Come senators, congressmen
Please heed the call
Don't stand in the doorway
Don't block up the hall
For he that gets hurt
Will be he who has stalled
There's a battle outside
And it is ragin'.
It'll soon shake your windows
And rattle your walls
For the times they are a-changin'.

Come mothers and fathers
Throughout the land
And don't criticize
What you can't understand
Your sons and your daughters
Are beyond your command
Your old road is
Rapidly agin'.
Please get out of the new one
If you can't lend your hand
For the times they are a-changin'.

The line it is drawn
The curse it is cast
The slow one now
Will later be fast
As the present now
Will later be past
The order is
Rapidly fadin'.
And the first one now
Will later be last
For the times they are a-changin'.


Bob Dylan, Outubro de 1963
(experimentar a versão cantada pelo Eddie Vedder ao vivo)

Momento Sem Senso

Tenho que anotar este pensamento. Porque me parece ou mesmo genial ou então o plágio inconsciente de alguma mente ouvida algures. Confirmem-me que não sou eu o autor. È que isto poderá ser o inicio do épico em que se tornará a minha vida. Do mito que trovadores vão trautear daqui a 100 anos e mulheres desmaiar só de ouvir falar no meu nome. Uma epifania sobre um jovem quase adulto que revolucionou o pensamento Humano e viu a sua obra reconhecida em vida com 3 Prémios Nobel e uma posterior bancarrota marcada pelo vício boémio das noites perdidas dançando com a Fama. Uma morte não anunciada em horário nobre mas o direito à toponímia de uma travessa conspurcada no local onde nasceu. Pensando bem, espero que tenha sido já outro a dizer isto. Porque ser-se genial como os outros foram deu-lhes trabalho e eu, como muitos, gosto mais de dormir. De qualquer das formas alguém me diga se já tinha ouvido isto:
Diz-se constantemente que por trás de um grande homem está uma grande mulher. Perguntei-me no outro dia se por trás de um grande homem não poderia estar simplesmente, dependendo da posição relativa ao astro rei, uma grande sombra.G.F

Tenho de contar isto: a !!!!ISABEL FIGUEIRA!!! tentou engatar-me ontem à noite.

Como está um dia de sol, um post light. Para fans de rebelos pintos e psicologias de bares de faculdade. Este post é e não é sobre o Amor. Toda a gente escreve, disserta, hiperboliza, eufemiza, intelectualiza sobre o amor, as relações amorosas. Eu neste post não vou fugir à probabilidade científica da estatística social. Porém gostava de começar pelo que me parece mais grave: toda a gente fazer o que agora faço.

Culpabilizo principalmente os poetas, escultores, dramaturgos, pintores, criativos, pensadores, escritores de casa de banho, argumentistas de cinema pela enxurrada de amor que trazem ao nosso quotidiano. As eternidades que despenderam a descrever pores de sol, a elevar em telas uniões consumadas, repetir infindavelmente em todos os dialectos «eu amo-te» enjoaram-nos. Obrigado, conseguiram tornar o mais belo bem da Humanidade num cliché. E já agora que está muito na moda linguística, kitch. Tornaram o romantismo kitch, cliché, descartável. Pior que isso, quanto mais eles falam de amor mais nos vamos afastando de amar. Já nos curaram a quase todos da ridícula obsessão de encontrar a mulher ou o homem das nossas vidas. E então já tratados e combatendo todo o combate épico de Amar, hoje proclamado obsoleto, vamos gostando, ora aqui ora ali de algumas, navegando em corpos em que nunca nos interessará estar ao leme. Deixamos o Amor para a literatura e cinema, ou para os 10 minutos antes de adormecemos. E como é cada vez mais fácil adormecer vamos acordando e vivendo os dias de conquistas fáceis, de engates estandardizados.

E entre os mais caricatos engates modernos estão os que se iniciam na Internet. Começa-se com um “donde teclas” abreviado, como o resto de toda a corte virtual. Constrói-se a personagem do outrem atrás do monitor. “Interessante e provavelmente giro/a” surgem como alicerces dos castelos no ar. Esquecemo-nos que quase toda a gente é sempre quase tão feia, normal, “simpática”, como nós; que atrás de um lol há de haver um vulgar sorriso.

Então, quando há necessidade de ver esse rosto, subtilmente pergunta-se pelo novo paladino do engate globalizante, o MSN. È muito mais fácil que perguntar: “tens fotos na praia?”. Por duas razões. Porque é explícita e nitidamente preverso queremos indagar sobre o potencial estético sexual do outro e porque as pessoas destas tribos têm sempre 10 ou 12 fotografias que por “acaso” tiraram no Algarve o Verão passado. Assim, os dois que procuram o mesmo, atenuam puritanamente as suas pulsões. Há também a possibilidade de se pedir o envio da fotozita do canto. Para ver melhor as mamas ou os abdomens, pensam. “Porque não se percebe bem o teu olhar, uma vez que o quadradinho é pequeno”, teclam. Os mais ousados e talvez menos cínicos ligam logo a webcam e microfones.

O jogo continua até chegar o timing perfeito para se conseguir o número de telemóvel. Diz-se o que se quer ouvir, mandam-se ursinhos em pacotes “compre 3 mensagens de imagem leve 4” e s.m. essa-se um “eu curto-te bués”. O que 90 por cento das vezes se traduz num “quero mandar-te uma valente queca”, especialmente quando as mensagens estão inundadas de reticências. E começam então os festejos de amor da Vodafone, da TMN.
Um dia, uma semana, um mês, conforme o índice de coragem hormonal, e marca-se um encontro. De preferência num centro comercial com muitas lojas, muitos estímulos que distraiam de uma possível conversa. Afinal o ritual de engate já foi estabelecido. Escolhe-se um filme que exija uma reflexão introspectiva, como “Scary Movie” ou o “Hulk”. Sai-se do filme com a sensação de não ter percebido bem o argumento, talvez porque as legendas passam muito depressa.

Depois, dependendo das horas a que têm de estar noutro lado, ou estaciona-se o carro num sítio “romântico” (qualquer terriola tem um, até Lisboa tem a Torre de Belém) ou vai-se para a casa despaternizada.

Já de novo e sozinho frente ao computador, muda-se de nick, e começa novamente a hora de ponta. Ou ali, ou numa discoteca, numa praia. Enfim, um vampirismo modernista invertido em que os próprios chupistas se consomem. São vidas dizem. Pergunto-me sobre qual será o ritual mais solitário. Este, ou o nosso, o dos que ainda não têm problemas de parecerem ridicularmente obsoletos?

P.S. Como é óbvio, o título do post serviu apenas como garantia da vossa leitura integral desta pseudo-reflexão. Se tal fosse verdade, neste momento não estaria por estas bandas a ouvir o Eládio Clímaco a relatar o Festival da Canção. G.F.

domingo, maio 02, 2004

Rendez-vous

Prateleiras de frigoríficos, raios de bicicletas, aspiradores e jornais transformados numa banda sonora incrivelmente criativa, cativante. O pioneirismo da psicodinâmica canina em animação cinematográfica. Os ombros largos da máfia, HolyFood, a Estátua da Liberdade badocha, os gémeos dos ciclistas, a velhice das gémeas, o crescimento incontrolável das grandes urbes. Ingredientes mordazes todos remisturados em tons de caricatura, instantes gargalhados em que se capta o ridículo da condição humana. E uma heroína lusa que transporta os traços do seu país aos ombros. Diminuta, coxa, de buço mal aparado, míope, cantando o fado mal tocado num piano. Mas quando procura a salvação, astuta e de artimanhas consegue atravessar oceanos e vencer. Ver este filme, é descobrir que também a sátira humorística não precisa de palavras. Ah, e "Bruno", verdadeiro basbaque. G.F.




Tradição ainda é o que era.

Alertando para a necessidade da B.A., Boa Acção diária, pedi à minha equipa criativa predilecta, os meus lobitos, se me podiam indicar alguns exemplos possíveis de serem postos em prática nas suas casa, com os seus pais. Num pequeno “brainstorming”, responderam-me: «ajudar a lavar a loiça, limpar o pó, arrumar bem os brinquedos, dar os ingredientes para a minha mãe cozinhar». O João Lopes disse-me ingenuamente: «ajudar o meu pai a ver televisão.»G.F.

quarta-feira, abril 28, 2004

Quando não se tem nada para dizer, cita-se. Quando os poetas expressaram melhor que nós o que sentimos, resta-nos publicar e ler as suas palavras. Suas e nossas. Este poema, assim cru num blogue ou cantado por José Mário Branco fez-me descobrir há alguns anos uma Mulher, Natália Correia. Que todas as almas jovens censuradas se possam sempre queixar desta ou de outra qualquer outra maneira. G.F.


Queixa das almas jovens censuradas

Dão-nos um lírio e um canivete
e uma alma para ir à escola
mais um letreiro que promete
raízes, hastes e corola

Dão-nos um mapa imaginário
que tem a forma de uma cidade
mais um relógio e um calendário
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim
para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu
para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos
com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
connosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história
da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

Temos fantasmas tão educados
que adormecemos no seu ombro
somos vazios despovoados
de personagens de assombro

Dão-nos a capa do evangelho
e um pacote de tabaco
dão-nos um pente e um espelho
pra pentearmos um macaco

Dão-nos um cravo preso à cabeça
e uma cabeça presa à cintura
para que o corpo não pareça
a forma da alma que o procura

Dão-nos um esquife feito de ferro
com embutidos de diamante
para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Dão-nos um nome e um jornal
um avião e um violino
mas não nos dão o animal
que espeta os cornos no destino

Dão-nos marujos de papelão
com carimbo no passaporte
por isso a nossa dimensão
não é a vida, nem é a morte


Natália Correia em "O Nosso Amargo Cancioneiro"

terça-feira, abril 27, 2004

Este post é para o Dinis.

Queria aqui deixar um agradecimento público e um manifesto de afecto para ti, Dinis, rapaz novo, que és sem dúvida o meu, senão único, fan. Tenho pena que não sejas uma rapariga da minha idade, de corpo esbelto, olhos lindos e mente brilhante, mas enfim, não se pode ter tudo. A mim calhou-me um puto do Norte, com alguns problemas mentais benignos, incrivelmente chato mas com uma qualidade que admiro, a curiosidade por descobrir e perceber o mundo e os mundos que nos rodeiam. Apenas dizer-te ainda que isto é um mero blog que 5 ou 6 pessoas teimam em ler todos os dias, que não fiques já ai todo excitadinho ou de lágrima no olho por te ter mencionado (cultiva a tua heterosexualidade, por favor), que os teus 15 minutos de fama chegarão sem dúvida mais tarde noutras esferas mediáticas. Queria agradecer-te pelos elogios que me fazes embora na quase totalidade das vezes serem falaciosos e nas outras se deverem ao facto de sofreres das tais perturbações mentais. Por último agradecer-te publicamente por teres dado ao teu perro o nome que uso como nick. Isso é de loucos e ridículo mas são raras as vezes na vida que alguém demonstra uma prova de amizade tão pura. Espero nunca poder ter a oportunidade de te ouvir a chamar pelo cão e saber sequer que faças algum comentário sobre possíveis semelhanças do cão comigo. Sempre que precisares de alguma coisa, tenta os teus amigos primeiro, a tua família e depois, no fim, a mim, já que a minha ausência é quase certa. Não sou teu pai, não sou teu irmão, mas sou teu amigo, por isso quando eu desamparar da loja deixa mensagem, poderás ter, eventualmente, resposta. Olha sempre de frente os escolhos, não irás encalhar. Do teu amigo e não Guru, um gajo do Monte que te curte mesmo totil, G.F.
«A superstição é para a religião, o que a astrologia é para a astronomia: a filha maluca de uma mãe sábia.» Voltaire

Num «abril e fechar de olhos»

Num «Abril e fechar de olhos», a liberdade fez-se adulta. Cresceram com ela os homens que a viveram. Ambos deixaram de ser crianças.

Analisamos hoje o passado ingénuo que vivemos aos olhos dos “grandes”. Fotografamos o ontem com as objectivas de tecnologia de ponta que inventámos hoje. Aos poucos, a nostalgia desses tempos felizes, do sonho, do amor incondicional pela libertação humana, deu lugar às frustrações de um povo que ainda vive com medo de cair da cadeira, de um povo que teima em vestir o véu nostálgico de um futuro transformado em beco difuso sem saída. Esquecemo-nos dessa madrugada em que crescer não era um receio, em que partir rumo à felicidade era tangível em cada bater de coração. Fomos crescendo, fomos esquecendo, fomos amargando. Fomo-nos tornando homens. Fomo-nos tornando mulheres. Depressa começámos todos a ser o que esperavam de nós. Depressa começámos a sonhar o que esperavam que sonhássemos. Deixámos de acreditar que amanhã ainda poderemos ser tudo. Ou porque há pouco amanhã, ou porque há pouca oportunidade para ser tudo, ou porque ser alguma coisa é suficiente e ser-se tudo é inqualificavelmente demagógico.

Psicanalisamos a criança que foi Abril para nos percebermos à esquerda e à direita, para instrospecionarmos o nossa evolução ainda tão parca. Esquecemo-nos que a criança Abril nasceu do breu de uma noite longa em que alguns, quase todos, não tiveram medo de fazer Amor. Esquecemo-nos que durante essa noite prolongada em que vivemos houve quem quisesse apenas entregar-se corpo a corpo, rasgar as fardas cinzentas, e fazer da pele salgada um novo mar onde partir desagrilhoados, satisfeitos, plenos. Nessas trevas que tanto tempo demoraram a findar, homens e mulheres, sem cores, nem fados, nem deuses, decidiram ter a criança que Abril nos trouxe. Amaram-se rompendo mordaças, erguendo as bandeiras invisíveis do singelo desejo de ser livre, esquecendo-se das frustrações capatazes, vencendo o medo, sempre o medo que diziam salvar da loucura subversiva. Nesse Inverno pavorosamente infindável, em que os amantes desoprimiram pulsações debaixo dos lençóis férteis de verdade, tecidos de felicidade virgem, concebeu-se a criança Abril.

E alguns pais dessa criança logo começaram a sonhar com o seu futuro, logo começaram a educa-la à sua maneira, logo quiseram que retirasse os cravos das baionetas, logo trataram de a moldar, dar-lhe números, parâmetros, protocolos, quilogramas burocráticos. Ofereceram-lhe rosas, martelos, rebuçados de laranja. Compraram-lhe fitas de Holywood, gravaram-lhe cassetes pop. Ensinaram como ler e escrever. Ampliaram-lhes os recreios de alcatrão e premiaram-lhe na puberdade com a identidade europeia por ter sido sempre bem comportadinha. Já licenciada andou de teleférico, descansou à sombra da pala de vários pavilhões. Cresceu, teve filhos. Sente-se importante, descobriu uma oportunidade única de ser efémera e futebolisticamente famosa internacionalmente. Essa criança, que agora adulta se maquilha, aparece nas revistas e dança desengonçadamente ao som do rock das belas vistas, não escondendo as suas perversões sexuais e o apetite pelo dourado.Tem rugas. Indisfarçáveis. À noite olha-se ao espelho. Lembra-se vagamente, por segundos, de quando era pequena e a pegaram ao colo, a levantaram no ar aos milhares e a beijaram chorando desalmadamente de alegria, gritando-lhe pelo nome. Relembra-se de quando ainda podia ser tudo, de quando partir era mais importante que chegar. O fado embala-a mas também a assusta. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de ensinar aos seus filhos que ainda é possível ver em cada rosto igualdade. Chega a cama e deita-se esquecendo-se de contar aos seus filhos que não são as cruzes, os cifrões e as bandeiras que fazem com que cada dia tenha significado. Chega a cama e pensa nos orçamentos, abdominais, relatórios, compras, peelings que tem de fazer no dia seguinte. Talvez comece a pensar que os que não queriam o seu nascimento é que estavam certos ou pelo contrário comece a sonhar com uma alvorada de mudança, na infância de um novo império ainda por conquistar. Alguém lhe enviará uma mensagem para o telemóvel, que poderá ser de esperança ou de perpétua deriva. Amanha saber-se-à.Num «Abril e fechar de olhos» adormece. G.F.

domingo, abril 11, 2004

Mr. Nick Cave

Para este Senhor e as suas sementes más qualquer palavra é parca. Aqui fica a letra de uma das suas canções, minhas, preferidas. Também porque é Páscoa. G.F.

God is in the house

We've laid the cables and the wires
We've split the wood and stoked the fires
We've lit our town so there is no
Place for crime to hide
Our little church is painted white
And in the safety of the night
We all go quiet as a mouse
For the word is out
God is in the house
God is in the house
God is in the house
No cause for worry now
God is in the house

Moral sneaks in the White House
Computer geeks in the school house
Drug freaks in the crack house
We don't have that stuff here
We have a tiny little Force
But we need them of course
For the kittens in the trees
And at night we are on our knees
As quiet as a mouse
For God is in the house
God is in the house
God is in the house
And no one's left in doubt
God is in the house

Homos roaming the streets in packs
Queer bashers with tyre-jacks
Lesbian counter-attacks
That stuff is for the big cities
Our town is very pretty
We have a pretty little square
We have a woman for a mayor
Our policy is firm but fair
Now that God is in the house
God is in the house
God is in the house
Any day now He'Il come out
God is in the house

Well-meaning little therapists
Goose-stepping twelve-stepping Tetotalltarianists
The tipsy, the reeling and the drop down pissed
We got no time for that stuff here
Zero crime and no fear
We've bred all our kittens white
So you can see them in the night
And at night we're on our knees
As quiet as a mouse
Since the word got out
From the North down to the South
For no-one's left in doubt
There's no fear about
If we all hold hands and very quietly shout
Hallelujah
God is in the house
God is in the house
Oh I wish He would come out
God is in the house



Pascoela

Domingo de Aleluia em directo da TVI. Morte e Ressurreição de Cristo, velas a 0,5 euros. O raio do estúpido coelho e a sua distribuição de ovos. Operação Páscoa: 4 mortos nas estradas. Kinder supresa, esta semana no sítio do costume.

A actual Páscoa é – me ridícula. Um pretexto para as marcas de chocolate, amêndoas e os T2 de Albufeira facturem aquilo que não poderão noutras alturas. Uma festa da Igreja que tantos desejam uns aos outros de “feliz”. Mas o que é uma Páscoa feliz? Porque não nos limitamos a dizer boas férias, boa praia, boa viagem? Uns agnósticos, outros apáticos, vamo-nos ressuscitando sim, mas sempre na fuga para a frente, de tanga, trabalhando o bronzeado artificial e rápido, fingindo que somos tropicais invadindo praias, disfarçando-nos de adinheirados em pistas de ski sintéticas. Serve a Páscoa de pretexto para muitos verem as famílias que esquecem durante todo o ano. Para falar das vidas de cada um que tornarão a repetir em estórias no próximo Natal.

Mas há quem se lembre de Jesus. Há quem se lembre do dele e dos seus calvários: um rol de 3 ou 4 Cristos por canal de televisão, sempre de barba bem tratada e olhos claros, trata de fazer esse serviço de memorização. Os que se dizem praticantes mas muitos já sem fé, esses, multiplicam-se pelas procissões cadenciadas ao ritmo obsoleto da tradição, do rito. Repetem-se evangelhos, palavras sagradas. Os coros de velhas cantam estridentemente Aleluia! Aleluia!. «Amarmo-nos uns aos outros como eles nos amou». Como os radicais xiitas amam os sunitas, como Yasser ama Sharon, como Bush ama o Protocolo de Kioto e o desarmamento nuclear americano, como o Bloco de Esquerda ama o Portas, o Partido Comunista a liberdade de expressão, como o Le Pen ama os magrebinos, como a Britney Spears ama a virgindade.

Esta metade, a cínica, vai fazendo as manchetes. Porque a outra metade de gente que ainda aqui vivemos felizes não fazemos notícia. A condição voyeur humana, a masturbação da dor vizinha, o esgravatar o sofrimento dos pares, o hipnotismo pelas fustigações alheias, o deslumbre pela decadência do próximo, qual ritual neodarwiano psicológico de sobrevivência, esses sim fazem as parangonas, headlines, punchlines, highlits e exclusives do nosso bombardeamento informativo quotidiano. A outra metade que apenas se propõe a hiperbolizar a boa acção entre os povos não é falada. Porque dizem os novos sábios que o Homem é naturalmente mau e condenado ao fracasso, que a competição é vantajosa em relação à cooperação. E esta vai sendo cada vez menos noticia. E nós vamos sendo cada vez menos notícia e cada vez menos. Porque somos utópicos e pouco rentáveis. Porque ajudar sem esperar recompensa não nos dá cartões gold. E assim alguns de nós vamos existindo, acreditando mais no Homem, não em Deus pois acho que o seu único e sólido argumento é o de não existir. Ou mesmo acreditando Nele, e já que o inventámos à medida das explicações de quem somos e dos sonhos de quem seremos, pedimos que Ele acredite na nossa redenção, no «escapar da escravidão mental». Usando-o na tentativa de esquecer que estamos abandonados, entregues à procura de algo ou alguém que nos faça sentir pertença. Mesmo sabendo que a Humanidade acaba por tragar aqueles que mais a tentam perceber e amar, vamos existindo assim nesse enigma ao mesmo tempo agonizante e reconfortante: Teremos um dia a Paz , a Liberdade global dos Povos? Se realmente podemos mudar-nos e mudar os outros, só através da acção, através da Arte, da produção de Cultura, do Criar, do poder da reificação humana que nos é inerente, é que realmente poderemos descobrir, no fim, que foi ou não possível construir essa mudança. Voltaire, Ghandi, Luther King entre milhares de nomes famosos e anónimos acreditaram. Jesus acreditou em nós. Morreu por uma causa. Talvez nós possamos, mas também temos de acreditar. Falta-nos, mais que a fé, a vontade de combater a inércia de descobrir que podemos vencer, podemos de facto mudar. Eu hoje poderia ter ganho o totoloto. Sonhei com o que faria com 1 milhão e 400 mil contos, troquei listas de compras imaginárias com uma pessoa que cepticamente me dizia que é mesmo muito remotamente provável acertar o 6. Mas a verdade é que nem eu nem ela alguma vez preenchemos um boletim. G.F.