sexta-feira, outubro 31, 2003

citaram

Pela primeira vez na história deste Oráculo e na minha história pessoal, citaram-me. Pela primeira vez fiz uma troca de blogues: «Mostra-me o teu que eu mostro-te o meu». Pela primeira vez ponho aqui um link, retribuindo a amabilidade. Não sabia como era ver uma citação minha noutro lado, ver as palavras que escrevi numa noite perdida soltarem-se e rumarem a outras janelas. Mais uma vez é sempre bom encontrar pessoas que escrevem e falam de pequenos pormenores que a nós também nos são importantes. À distância de um clique, uma leitura encantada. G.F.C.

terça-feira, outubro 28, 2003

Se Deus existe, em Lisboa anda de Metro.

Andava há tempos para escrever sobre esta estória pequena cuja lição me serve para as alturas em que invariavelmente subavalio as capacidades de algumas pessoas que vou conhecendo ao longo da vida, devido a preconceitos que não gostava de ter mas que todos temos (mesmo que prescritivamente não o assumamos). Penso nela muitas vezes. Não só devido à pequena lição mas sobretudo devido ao pequeno momento de simplicidade e de beleza que surgiu onde menos esperava: no metropolitano de Lisboa. A beleza em sítios onde a menos suspeito sempre me fascinou.

Mesmo que a verdade deste relato não tenha, para quem me estiver a ler, nada de especial, o que é certo é que para as pessoas que estavam naquela carruagem, aquele momento deve ser ainda hoje lembrado com um sorriso. È com base na possibilidade remota que alguma dessas pessoas esteja a ler, que escrevo este post. E já agora, escrevo também para aquelas que compreenderem o porquê dessa contemplação.

Aconteceu em meados de Abril. Tinha acabado as aulas e dirigia-me ao Chiado pela Linha Amarela. Não me lembro em que estação entrou aquela senhora grávida, jovem, muito bonita, com uma barriga enorme. Lembro-me de ter pensado para comigo porque é que teria de viajar de metro, aquela grávida, aquela hora. Um senhor levantou-se para a deixar sentar e saiu na estação seguinte. Enquanto tentava estupidamente descobrir algum sintoma de infelicidade na grávida pelo facto de estar a andar de metro, reparei que sorria com esperança ao olhar o vidro, e reparei noutra pessoa que se dirigia para um lugar deixado à sua frente. Era um homem aparentemente com 30 anos, mongolóide, Síndrome de Down, com o sorriso característico, camisola de lã por baixo de um sobretudo mal apertado e sujo. Nos pés umas sandálias velhas. Com a língua de fora e a cabeça a fazer movimentos repetitivos, caminhou e sentou-se frente a frente com a senhora que sorria a si mesma no espelho em velocidade pelos túneis escuros das entranhas de Lisboa.

Depois, depois aconteceu uma prova do amor, que nós ditos normais, nunca saberemos transmitir com tanta espontaneidade, com tanta natural abertura, com tanta honestidade terna, com tanta doçura como a daquele sorriso e a voz tão terna como a daquele rapaz mongolóide, naquele dia, naquela carruagem. Olhou-a, baixou os olhos em direcção à barriga e sorriu. A senhora sorriu retribuindo a simpatia. Esteve uns momentos pensativo e então, sem receio de estar a falar com uma estranha, sem pensar na reacção do resto dos passageiros, disse arrastando a voz enrolada devido à sua fortuna genética “ Tem muita sorte. Vai nascer na Primavera. Vai ser muito lindo como a mãe”. Levantou-se ao mesmo tempo que a senhora agradecia e saiu na outra estação dizendo “Parabéns”, sempre a sorrir. A senhora disse novamente obrigado e todos os que estávamos naquela carruagem agradecemos, embasbacados, calados, cada um à sua maneira… G.F.C.

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Conheço um gay.

O meu dicionário de Word é gay. Só tem a palavra vizinho, pede-me que ignore vizinha. Já que falo de gays, há dias estava a falar com um gajo que conheço, gay. Não tenho amigos gays como muita gente gosta de dizer. Por acaso não tenho amigos gays, nem pretos, nem cegos, nem com qualquer estigma marcante. Nem gostava de ter. Gosto de ter os amigos que me vão surgindo na vida, amigos que se fazem num acaso de um dia, numa conversa perdida. Talvez um dia esse acaso me traga um amigo perneta, uma amiga barbuda. Mas prometo já aqui não os buscar para argumentos a favor ou pró exclusão social. È que hoje, ter um amigo preto, dizer que temos um amigo gay parece que dá um certo status, parece que torna alguns basbaques cosmopolitas. Torna-os ainda mais iguais aos pequenos, julgando-se eles que o facto de ter um amigo gay os faz diferentes e abertos.

Mas a verdade é que hoje em dia quase ninguém tem amigos. O que se tem é uma lista de contactos, de preferência eclética, gente de vários quadrantes, onde vamos buscar amigos para argumentos, para exemplos, para negócios, para desabafos sincronizados, para críticas, para favores. Mas isto não tem nada a ver com o que queria escrever. O último parágrafo é seria apenas o post.

Conheço um gay, que não é meu amigo e dai a generalização que vou fazer ser completamente abusiva. Mas é que o gajo é o gajo mais mesquinho, mais intriguista que conheço. E estes atributos surgem de forma directamente proporcional à sua sensibilidade artística, à visão dos pequenos pormenores. Portanto concluo erroneamente que, segundo a minha amostra, os homens gays têm o melhor que os homens não possuem e ao mesmo tempo o pior que as mulheres julgam não ter. G.F.C.


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IMPROBE BENFICA, QUID NON MORTALIA PECTORA COGIS!

Sinto que o amor a um clube de futebol é definitivamente o sentimento mais estúpido e inexplicável que alguém pode nutrir. E como o que tudo é inexplicável e estúpido na vida há que perder tempo a dissertar sobre isso. Falarmos das nossas paixões mais que exorcizar-nos humedece-nos saudavelmente os olhos, dá-nos alento para nos apaixonarmos outra vez, como a primeira. E a primeira vez que me lembro do Benfica tinha uns 3 ou 4 anos. Lembro-me que ainda não andava na pré primária. Nesse tempo éramos todos do Benfica. A cor preferida de todos os meus amigos era o vermelho. A canção que sabíamos melhor era “Olé olá o Benfica é o melhor que há”. Havia sempre um, e apenas um, do Sporting, que dizia “Que há que havia, mas agora é uma granda porcaria”. Havia sempre um, apenas um. E mesmo esse sabia que o que cantava não era verdade.

Guardo ainda religiosamente o cartão de sócio isento menor. Com a maquete do antigo Estádio da Luz no verso e a fotografia na fronte tirada há uns 14 ou 15 anos. E há 14 ou 15 anos, aquele que agora revejo na impressão, fazia colecções de calendários e cromos com todos jogadores do clube da águia.
Não ia ao Estádio para ver o jogo em si mas para ver, espantado, a forma como os velhotes dos lugares cativos se exaltavam e chamavam nomes ao árbitro. Foi no Estádio da Luz que ouvi pela primeira vez “filho de uma granda puta”. Não sabia ainda o que eram as putas, mas que os velhos gostavam de chama-las gostavam. Também tinha a ligeira impressão de que aqueles senhores não gostavam muito do mais gordo que vestia de preto. Ria-me de toda aquela energia dos mais velhos mas entediava-me porque, a bem da verdade, só gostava do momento em que era golo, o meu pai me pegava ao colo e todo o estádio gritava em uníssono elevando-se com as suas bandeiras rubras.. Isso era o que me dava mais satisfação, fosse no estádio frente ao Penafiel, fosse em casa, no sofá, frente ao Arsenal para a Taça dos Campeões Europeus. O ritual de gritar golo, ser levantado e abraçado pelo meu pai, ouvir a minha mãe gritar assustada, ficar estupidamente feliz a gritar “olé olá”, são momentos únicos que o Benfica me proporcionou.

Esses momentos não se cingiam a casa ou à Catedral. Na escola tornava-me no Vítor Paneira quando centrava a bola para a Cláudia, que era o melhor jogador/a da turma. Quando marcava um golo vestia a pele de Rui Águas, quando o Jepas mandava um “bajardo” a 50 metros da baliza, transformava-o no Isaías.

Houve também desilusões, por exemplo na final europeia em que os jogadores do Benfica perdiam constantemente as chuteiras ou noutra época em que o Rui Águas se mudou para o F.C.P. e eu queimei, às escondidas, todos os cromos que tinha dele. Foi a minha vingança pessoal e desde então que passei a odiar o Porto e os seus esquemas. Influenciado pelo meu pai claro, esse ódio a Pinto da Costa, Reinaldo Teles, Guarda Abel, Paulinho Santos e o resto da Inteligenzia foi crescendo. Não se tratava de o ódio a um clube mas um sentimento de revolta contra as insinuações, a falta de fairplay, os jogos ganhos na secretaria, as falsas suspeições, a ironia a roçar a ordinarice, o compadrio, enfim, uma amálgama de situações que mandaram para a fossa o futebol português. Via o Porto como a equipa ideal dos Maus, nos desenhos animados do Tsubasa, aqueles que não olham a meios para atingir os fins. Nunca me hei de esquecer do melhor exemplo da tacanhez humana, quando num jogo, ao sair de maca, Paulinho Santos, fingindo-se lesionado para ganhar tempo, piscou o olho aos seus capos colegas no banco mafioso azul e branco. Hoje esse Mal continua, foi fielmente transmitido dos mestres para os discípulos. Agridem-se jogadores com maldade atroz, faz-se anti jogo, quebram-se contra ataques desonradamente, pressionam-se fiscais de linha. Um Mal que tornou este campeonato tristíssimo. Um Mal que vai tirando a magia dos encontros nacionais e que faz com que o meu vizinho de 13 anos torça pelo Barcelona. Um Mal que trouxe o pior que existe no nosso portuguesismo de bairro. Pois dizia bem um professor que tive, “o Desporto não forma carácter, revela-o”….

Para mim, então e agora, O Bem e o Mal encontravam dentro das quatro linhas a melhor analogia. Naqueles tempos, ser do Benfica tinha deixado de ser apenas “Ser do Benfica”, mas tornara-se ser de um clube contra os pequenos, os reles, os provincianos bacocos. Um clube do Povo mas com classe e não um clube de elite. Pois o Benfica é o único exemplo de verdadeira democracia existente em Portugal. Quando o João Pinto marcou o 3º golo frente ao Sporting em Alvalade, no célebre 3-6, ao mesmo tempo gritaram golo pedreiros, monárquicos, cabeleiras, escritores, presidiários, advogados, doentes terminais, médicos, repetentes, professores, pretos, brancos, monhés, portugueses de 2ª geração, crianças, mulheres e idosos, cultos, bimbos, gajos que se julgam bimbos, bimbos que se julgam cultos, políticos, gente honesta, putas e padres. Gritaram e gritam homens e mulheres com uma paixão, na sua maioria uma amostra do país real que temos, o país que muitos não querem ver ou não sabem existir. Pessoas que constroem a História de um país mal educado, entregue aos seus traumas de guerra e a anos de acorrentamento. Pessoas da tribo do futebol que infelizmente precisam deste circo moderno. Precisam que o Nuno Gomes se torne Nuno Golos e os faça esquecer por momentos a sabida incerteza quanto ao dia de amanhã. Porque um golo lhes dá essa iludida esperança, porque uma vitória os transforma em heróis que nunca chegarão a ser.

E no Sábado, heróis anónimos se juntaram para um momento histórico. Uniram-se na nova Catedral, onde religião e paixão se confundem. Onde as balizas se transformam em altares, os novos bancos de plástico em confessionários. Onde os Santos dão o pontapé de saída simbólico e os Sacerdotes da bola se encarregam de levar a audiência a comungar do Golo. Nessa noite, 65 mil vozes acompanhadas por outros milhões em casa arrepiaram-se com a Festa. Um sonho imenso envolveu-nos a todos e a Luz iluminou-se. Limpa, imponente, soberba, moderna. Cascata de luzes, constelações, uma águia a cruzar os céus, lágrimas, assobios aos promíscuos que sempre se aproveitaram da “religião” para ganhar os próprios fiéis aos seus credos, fogo de artifício. Paixão e emoção. Porque a vida não se faz só de orçamentos, porque por vezes também precisamos de parar e amar perdidamente uma causa, uma mulher, um ideal, um clube. E é feliz a vida nesses momentos em que muitos amamos o mesmo. Em que muitos demonstramos o nosso fervor, nos resignamos aos Deuses da Bola e nos sentimos pequenos face ao gigante, à instituição, à História que nos ultrapassa.

No Sábado, dia 25 de Outubro de 2003, renovou-se o sonho, lançaram-se novas redes à esperança. E quando o Benfica ganha, ganhamos nós, ganha o País. As manhãs lusas tornam-se mais simpáticas, o trabalho árduo e mal pago faz-se com uma motivação renovada. Passa-se nas ruas e sorri-se ao ouvir “e o nosso Benfica?”. Pois hoje o nosso Benfica, ainda não vai bem, há apenas intenções. Dez anos já é muito tempo mas até ao dia em que a resposta ao “E o nosso Benfica?” se traduzir nas ruas ao grito de “Campeões”, corações baterão mais acelerados, argumentos irracionais serão esgrimidos nas mesas de café. Haverão mais dias como os de Sábado. A História de um clube desportivo faz-se destes dias. Dos dias em que vamos para o estádio expectantes, ansiosos, confiantes na vitória. Dos dias em que esquecemos o passado recente e acreditamos que é a partir daquele momento que tudo se reconstruirá. Dos dias em que o cachecol ao pescoço transporta os nossos traumas, os nossos receios, as nossas raivas e ódios, as nossas crenças e atitudes.
A História do Benfica e a minha, e a nossa, foram-se construindo juntas. Dias como os de Sábado são como festas de anos a que íamos quando éramos putos, não sabíamos como iam ser mas tínhamos quase a certeza que alguma coisa maravilhosa podia acontecer. No Sábado a Magia aconteceu. Acredito que há mais Sábados e Domingos assim. Obrigado também por isso Glorioso Sport Lisboa e Benfica. G.F.C.

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domingo, outubro 12, 2003

Ofereço-vos, putos do meu tempo.

Depois de muita pesquisa, em holandês e em japonês, encontrei estes fragmentos de um passado muito saboroso. Com todos os que foram crianças, naqueles tempos, os reparto.












"agora escolham"...

G.F.C.

sábado, outubro 11, 2003

Talvez o último romântico...



A RTP transmitiu ontem um resumo do Festival Galp Energia, o último concerto no Estádio de Alvalade. Só mesmo a música portuguesa de qualidade para me levar a esse estádio que jurei, aos 13 anos entre amigos, nunca lá por os pés. Clubismos bacocos à parte, a verdade é que aquilo já na era bem um estádio e hoje sempre me arrependerei de não ter assistido à maior vitória do Benfica desde que existo, o mítico 6-3.

Do concerto em si, recordo a companhia, as músicas de Sérgio Godinho cantadas de uma ponta à outra, a boa disposição da Seita dos Cabeças no Ar, o milionésimo concerto de Xutos e Pontapés, as danças ao som dos novos valores, a demagogia em palco de Pedro Abrunhosa, um David Fonseca que não é definitivamente para se ouvir ao vivo (a não ser que sejamos do sexo feminino e tenhamos 15 anos). Mas o dia, ou melhor, a noite trouxe um dos espectáculos mais mágicos que já assisti ao vivo nos últimos tempos. Um Senhor da M.P.B., Caetano Veloso. A RTP apenas transmitiu duas das suas canções. Pouco, mas valeu por todo o resumo.


Temo não saber escrever o que senti ao ouvir todas as canções hipnotizantes daquele homem de cabelo já grisalho, sozinho, apenas iluminado por uma luz branca, com a sua voz e o dedilhar de um único violão, o seu. Uma voz capaz de tocar almas, especialmente por causa da beleza e charme da sua simplicidade. Nesta noite de hoje, que revejo outra e outra vez um dos melhores DVDs de música que tenho e que fiz questão de ser a minha primeira compra, "Noites do Norte", volto àquela noite. Mas não volto só àquela noite. Viajo pelo Carnaval da Bahia, pela Lisboa que amanhece, pelos sons quentes de raiz africana, pelas areias imaginárias em praias desenhadas à nossa medida e onde encontramos aqueles que sempre amamos ou sonhamos. Cruzo, num ápice, as 4 estações e sinto-me sozinho e feliz por falar uma língua que é sem dúvida a mais bela inventada pelo Homem. Mas para ouvir Caetano nem precisamos de perceber Português. A sua voz e guitarra transcendem a Babilónia e soltam sorrisos, libertam a nossa pura estupefacção humana. Talvez seja ele, um dos “últimos românticos" que nos escreve Lulu Santos…Obrigado Caetano. G.F.C.



«Faltava abandonar a velha escola
Tomar o mundo feito Coca-Cola
Fazer da minha vida
Sempre o meu passeio público
E ao mesmo tempo fazer dele
O meu caminho só, único

Talvez eu seja o último romântico
Dos litorais desse Oceano Atlântico
Só falta reunir a Zona Norte à Zona Sul
Iluminar a vida
Já que a morte cai do azul

Só falta te querer
Te ganhar e te perder
Falta eu acordar
Ser gente grande pra poder chorar

Me dá um beijo, então
Aperta a minha mão
Tolice é viver a vida assim
Sem aventura
Deixa ser pelo coração
Se é loucura, então melhor não ter razão»

(Lulu Santos - Antônio Cícero - S. Souza)
No final daqueles dias em que falei muito e ouvi menos do que gostaria arrependo-me sempre. De todas as vezes que escrevo, arrependo-me ainda mais e sempre. È durante esse arrependimento que me surgem as palavras sensatas de Calvin Coolidge: «É melhor permanecer em silêncio e pensarem que somos parvos, que abrirmos a boca e acabarmos com todas as dúvidas».

G.F.C.

doi-me tudo, doi-me o joelho, ai que fadiga o que é que eu faço?

Realmente estou muito cansado, trabalhámos que nem mulas, estamos cheios de maleitas. E o pior é que descubro que gostamos disso, que nos gabamos disso, dos nossos males, por mais ínfimos que sejam. Com tanta “fita”, pergunto-me porque será que nós homens, nos vangloriamos das nossas cicatrizes de guerra e hiperbolizamos qualquer pequena dor como se fosse uma tortura estalinista ou uma chaga dolorosa de Cristo?
G.F.C.

«Quero ficar sempre estudante»

Acabo de acordar de três semanas extenuantes. Sento-me nesta cadeira para escrever essencialmente sobre a revolta de querer ser para sempre estudante. Para falar sobretudo do que senti nestes dias que acabam da melhor maneira: na gratificação de um cansaço puramente físico. Foram dias de praxes, de jogos, de comunhões, de adaptações, de trocas, de muitas gargalhadas. Foram dias de festa e de fraternidade que vai faltando nas faculdades desta capital imensa mas fechada, que se isola em cada um dos seus estudantes. Hoje, que acordo cansado mas feliz, escrevo sobre união. Hoje, com uma canela de nódoas negras, uma escoliose a rir-se de mim e agradecer-me por mais uns dias de más posturas e desengonçados esforços, os olhos mal abertos como se estivesse constantemente a acordar mesmo sem nunca adormecer, uma voz que nunca chegaria ao Tivoli, os pés com necessidade de 5 tipos diferentes de massagem oriental, escrevo sobre o espírito académico.

Recuo à faculdade, aos preparativos, ao “antes de”. Revejo os guias do caloiro num monitor à espera de se tornarem matéria. Às discussões empolgadas sobre a praxe, ao golo da vitória, o 6 a 5 que eu e o Roque marcámos, tornando-nos nos primeiros portugueses campeões intergalácticos de matrecos. Retrocedo a toda a preparação da recepção ao caloiro, que abraça pela primeira vez o Ensino Superior.

E o depois, o primeiro dia (mais um) do resto da vida deles. As matrículas, os seus primeiros olhares que viajaram por nós e pelos edifícios estranhos e que daqui a 6 meses já serão parte do seu quotidiano, seu segundo lar, sua casa, a da sua família. Os seus olhos que espelhavam medos, expectativas, dúvidas, muitas incertezas, poucas garantias. No momento em que entraram na faculdade e a sua vida, que tantas voltas dá, mudou, num segundo. E assim mudou o seu mundo. Um mundo que começou com aula fantasma de um professor que sentimos um dos nossos, diria mesmo um colega; um mundo que se iniciou com músicas repetidas até à exaustão, gincanas, orgasmos fingidos, figuras tristes nas ruas alfacinhas, aleluias libertadoras, tribunais com “tareões de pila” e por fim baptismos com as águas límpidas do lago académico.

Estamos, os que preparámos, cansados, é verdade, mas o nosso esforço por uma maior unidade entre todos, pela criação de um bom ambiente académico, importantíssimo para um bom trabalho, para um estudo feliz e com sucesso, foi recompensado. Isso é feito simplesmente quando ouvimos e vemos a forma como os próprios caloiros agradecem, dão eles o exemplo de boa disposição, de incentivo e inovação. Quando sorriem e já se conhecem minimamente entre si. Estamos cansados porque largámos a refrescante t-shirt e o conforto dos nossos ténis para nos trajarmos a preto em plenos dias de calor, calçando sapatos amigos da bola e do calo. Aturámos numa só noite de festa, uns 700 bêbados, limpamos milhares de copos de cerveja, varremos vários metros quadrados de todo o tipo de lixo. Exaustos, com lucro mais que monetário, um lucro de satisfação.

Tudo isto num ritmo arrebatador de 4 dias intensos em que veteranos e caloiros estão por descobrir quem se divertiu mais. Em que veteranos voltaram a ser por momentos caloiros como todos já fomos, pelo menos em alguma altura das nossas vidas. Já todos tivemos perdidos no meio de uma multidão de estranhos cuja a única certeza é que a maioria deles viverá connosco pelo menos 5 anos da nossa vida. Alias, essa minoria que o destino recolherá do aglomerado de caras novas será mesmo parte substancial da nossa vida. Crescerá connosco; ensinar-nos-á; rir-se à das nossas piadas; estará connosco a dançar na primeira bebedeira; confidenciará sobre íntimas afinidades; será o primeiro a saber que tirámos a carta; copiará por nós no exame do cadeirão lixado; estará 4 dias seguidos de plantão a fazer trabalhos de grupo onde de trabalho só se podem contar as últimas 12 horas antes da entrega; comerá na cantina o mesmo bitoque desenxabido que nós; passará bilhetes satíricos sobre os professores em pleno anfiteatro; gritará connosco até à exaustão os gritos académicos; cantará arrepiado, ao trinar de uma guitarra, uma serenata; erguerá copos de sangria nos ares perfumados por tabacos e brindará a tudo e a todos, aos muitos e pequenos nadas, à vida e aos seus amores de estudante, aos tempos dos verdes anos em que ainda sorrimos sem o travo de amargura nos corações e ainda nas vozes trazemos o doce sabor do sonho de ainda podermos ser tudo o que quisermos.

Essa pequena minoria, o nosso grupo de colegas, de amigos, quererá ser para sempre estudante e eternizar a tal ilusão. Quererá que o tempo estagne e que o amanhã incerto (a altura em que estaremos por nossa conta, o momento em que as nossas capas negras se definitivamente arrumarem, os trajes deixarem de servir, os corredores que percorremos todos os dias desaparecerem, as vozes de fundo familiares do bar se calarem) seja o resultado das relações e pontes que se foram construindo ao longo destes anos. Porque esses companheiros e amigos perceberão que, como acabou de cantar Caetano Veloso no primeiro canal, «embora o tempo não pare, no entanto nunca envelhece.». G.F.C.


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